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A Douta Ignorância

Política, Economia, Literatura, Ciência, Actualidade

A Douta Ignorância

Política, Economia, Literatura, Ciência, Actualidade

Ciganada

Tiago Moreira Ramalho, 30.08.10

De volta ao campo, que a vida na civilização cansa, e em harmonia com a ferrovia, que é uma garota bem jeitosa, mas um pedacinho desamparada, que os calmeirões só gostam de engatar o alcatrão, manias, tenho a dizer que não, não somos todos ciganos, mas que, sim, quando um inocente está preso só os cobardes podem andar nas ruas.

A deportação massiva de ciganos – perdoe-se-me não usar aquela palavra da moda, toda muito pimpona, mas cresci a ouvir ciganos (por vezes com sufixos e prefixos, digamos, pouco líricos) – por parte do governo francês dá vontade de ir mijar (ou pior) na campa do senhor Jefferson, para quem a França era a segunda pátria de todos nós, logo a seguir àquela que o destino nos reservou para natal. Acredito que uma medida semelhante, se aplicada por estas bandas, que isto é mais francês que o catano, apesar de lhes termos chutado o rabo há uns anitos, seria recebida com uma aceitação ainda maior que a pornográfica aceitação francesa. Apesar de sermos um país de tristes emigrantes que foram para trolhas com uma mão à frente e outra atrás, somos donos de uma especial arrogância nestas matérias. São os pretos de merda, os cabrões dos chineses, os filhos-da-puta dos indianos e, enfim, porque é deles que falamos agora, os ciganos do caralho.

De qualquer modo, abstraindo-nos nós do triste facto de haver muita matéria desperdiçada em humanos desnecessários – ai o misantropo, como ele anda!... –, a verdade é que só um Estado falhado pode permitir, até do ponto de vista constitucional, uma limpeza étnica como a que vemos hoje. É inconcebível que a França que inventou os Direitos Humanos e ajudou a dar à luz a União Europeia seja a mesma França que, tantos anos depois, suja as mãos, enviando cidadãos inocentes, muitos deles crianças, idosos, famílias inteiras, em aviõezinhos para a Roménia e a Bulgária com chequezinhos de valor variável – trezentos euritos para os adultos, cem euritos para a piquinada. Sente-se no ar o cheirinho dos velhos livros de História. Deixemos que esta gente brinque com coisas sérias, que acabaremos a chorar o desleixo.

Tal como nos filmes

Bruno Vieira Amaral, 30.08.10

Publicado no i

 

Unha com Carne, Elmore Leonard, Teorema

 

“Não tinha paciência para os argumentistas que tentavam fazer descrições de cenas com um toque literário. Chamava-lhes argumentos Ó-pra-mim-a-escrever. Agora olha para o argumento dos irmãos Coen para o Este País Não É Para Velhos. É sucinto mas tem lá tudo, nem uma palavra a mais.” (p. 228)

 

Há uma frase no filme Chinatown que ajuda a perceber o consenso da crítica em relação a Elmore Leonard, basta que lhe acrescentemos os escritores: “Políticos, prédios feios e prostitutas tornam-se respeitáveis se duram muito.” Longevidade, despretensiosismo e adaptações cinematográficas por realizadores como Soderbergh e Tarantino transformaram Leonard em autor de culto: nem suficientemente bom para estar ao lado dos grandes, nem tão mau para ser atirado para o caixote do lixo. Aos oitenta e quatro anos, Leonard continua a escrever como sempre escreveu (um estilo expurgado de ornamentos), dentro do género que o popularizou (escrevia westerns mas quando o negócio passou de moda dedicou-se aos thrillers policiais) e até se dá ao luxo de recuperar personagens de outros romances, que é o que acontece neste Unha Com Carne, como se convidasse velhos amigos para uma grande festa. Jack Foley, o assaltante de bancos de Out of Sight, Cundo Rey, o criminoso cubano de LaBrava e a vidente Dawn Navarro, de Riding the Rap, são figuras resgatadas para este romance de amizades interessadas, traições e reviravoltas.

 

Não é difícil imaginar uma futura adaptação para cinema, mas a ligação entre a sétima arte e os livros de Leonard é duplamente parasitária. Se o cinema se tem alimentado da obra de Leonard, o próprio autor não dispensa os nutrientes do cinema. O que se vê não apenas na estrutura que facilita a adaptação (narrativa linear, capítulos curtos, muitos e bons diálogos, nada de descrições e psicologia), mas também nas personagens que citam Scarface ou Os Três Dias do Condor e que podem ser ex-vedetas e produtores de cinema, assaltantes de bancos e o lumpen do show-biz: strippers, videntes e partenaires de mágicos.

 

Tantas vezes louvado pelo realismo de diálogos e personagens, em Unha com Carne Elmore Leonard monta, uma vez mais, um jogo de espelhos em que a realidade se parece despudoradamente com a ficção. Se o leitor chegar ao fim a pensar “isto é como nos filmes” é porque os romances de Leonard devem mais aos códigos do policial (literário e cinematográfico) do que a qualquer forma de realismo. Os policiais são mesmo assim, como nos filmes.

Os idiotas

Tiago Moreira Ramalho, 30.08.10

Então parece que houve uma manifestação, assim daquelas na rua, para contestar, assim veementemente, a barbárie iraniana. E parece que, a seguir, um bando de idiotas, uns involuntários, os mais tristes, e outros voluntários, os mais confusos, veio chamar de idiotas os que lá andaram. Bando de idiotas, a protestar contra a lapidação de mulheres, não sabem o que é bom. Em mil nove e cinquenta e oito, quando eu andava a jogar nos descampados, levava pedradas e ainda aqui ando. Pois. É a lapidação de seres humanos e o toucinho. Coisas agradáveis, se levarem um pedacinho de açúcar. Quanto ao resto, façam favor de pegar num cabo bem grande e espetá-lo até que vos saia pela garganta. É que há limites para a estupidez, rapaziada.

Filisteu

Bruno Vieira Amaral, 22.08.10

Longe de mim querer comparar Memento a O Último Ano em Marienbad, num exercício de cabotino filisteu. Memento quer ser percebido, ainda que se esconda sob um contorcionismo de argumento. Tem a profundidade intelectual de um puzzle. É uma obra de arte no mesmo patamar de um problema de sudoku. Já o velhinho filme de Resnais não está organizado de forma a ser percebido. É uma obra de arte que foge ao espectador até que este, e não a obra, se renda. É claro que o espectador pode fazê-lo de duas maneiras: mandando Resnais à merda e dizer que não percebeu nada do filme ou contemplando a obra sem querer à força traduzi-la para o seu (muitas vezes parco) léxico mental. Há obras de arte que existem e tudo o que são e podem ser é o lugar que ocupam no mundo. Dentro de certos filmes "percebíveis" há imagens que não se rendem. Penso em duas: o último plano em que aparece a personagem de Barbara Bel Geddes em Vertigo e a imagem final de Jean-Pierre Léaud em Os 400 Golpes. Não sei o que significam, mas sei que me dizem tudo aquilo que preciso de saber. 

Os aristogatos

Tiago Moreira Ramalho, 21.08.10

Começa a tornar-se corriqueira, o que é caminho andado para se tornar verdade oficial, a ideia de que existe um preconceito de classe relativamente a Pedro Passos Coelho. O Francisco José Viegas defende a ideia aqui e, noutros lados, outros a defendem, como é bem sabido.

Digamos que a coisa cai bem. De uma assentada, desqualifica-se o adversário, apodando-o de discriminadorzinho irracional, e, ao mesmo tempo, vitimiza-se o sujeito da conversa, Passos himself, além de se associar a figura a uma outra figura, a qual, regra, os que usam esta argumentaçãozinha não apreciam muito. Falamos aqui, leitor desatento, de Aníbal himself. Digamos que do ponto de vista retórico, melhor é difícil. Tirando o logos do discurso, está lá tudo, e como o logos, por estas bandas, é o que menos interessa, podemos dizer que está lá tudo ponto. A verdade, essa, fica para outro dia.

Professor Alfredo Tinoco

Bruno Vieira Amaral, 20.08.10

Um bom professor vale anos de estudo de manuais obsoletos, compensa o convívio forçado com patetas incuráveis, justifica o tempo perdido em transportes para se chegar à faculdade. O bom professor é aquele que nos ensina o que só ele nos pode ensinar. O bom professor é aquele que, durante uma aula de História numa secundária dos subúrbios, discute Ian McEwan connosco. O bom professor é aquele que nos leva até Borges e, com toda a generosidade do mundo, nos empresta uma edição de Ficções. O bom professor é aquele que, a pretexto de uma matéria qualquer, nos convida para ver Ondas de Paixão. O bom professor é aquele que, no meio da estupidez geral de uma turma do nono ano, tem a coragem de se dizer fã de Debussy. O bom professor é aquele que sai do caminho estreito dos programas e partilha com os alunos um pouco do seu mundo, da sua experiência, do seu conhecimento, da sua perplexidade perante a vida. Alfredo Tinoco foi um desses professores. Recordo pouco das aulas dele, qualquer coisa sobre Museologia, mas não esqueço aquela tarde numa esplanada de Entrecampos em que afirmou, com um sorriso gaiato e a voz rouca de gigante, que era anarquista e que, por isso, não se dava ao trabalho de votar. Proclamou, ufano, a aversão ao bicho automóvel e confessou que não tinha carta de condução e que, mesmo a trabalhar no estrangeiro, encontrara sempre uma solução para esse problema que, na nossa época, equivale a uma deficiência. Esta simples lição sobre diferença ensinou-me mais do que todas as aulas sobre eco-museus e patrimónios. Infelizmente, não vou a tempo de lhe agradecer essa dádiva, porque o Professor Alfredo Tinoco, mestre gentil e grave, morreu esta semana. A generosidade, da qual fomos felizes beneficiários naquele fim de tarde, permanece comigo.

 

Bruno Vieira Amaral e Henrique Raposo

Papas na língua

Tiago Moreira Ramalho, 19.08.10

Passar férias no Portugal Rural implica certas cedências que a confortável vida suburbana evita. Uma delas é assistir de sorriso amarelo, que o agrado, quando não é genuíno, deve ser fingido, à programação dos canais de sinal aberto. Ora sucede que, de manhã, e eu hoje acordei de manhã, a menos que tenhamos um jornal, que não se vende por cá, ou um livro ao lado, apenas podemos optar entre os três programas do Goucha e os desenhos animados de má qualidade da RTP2 – se fossem de boa qualidade, vê-los-ia. Livro ao lado até tinha, mas a vontade era pouca, então acabei a refastelar-me na cama a assistir a um desses programas do Goucha, que, no caso, era apresentado por uma senhora grávida e um senhor careca. A determinada altura, mesmo antes de ir à retrete, o que me pareceu uma providencial coincidência, chega ao programa, a seguir à gritaria da dupla apresentadeira, a menina Ana Malhoa, senhorita que me divertiu nos tempos do Buéréré – sabes que começou no «a» – e que foi elogiada pelo apresentador careca por, entre outras coisas, não ter papas na língua. Fazia vinte e cinco anos de carreira – qual era a carreira não disseram – e, à conta disso, fez um documentário sobre si própria a que chamou, porque aquela cabecinha é um poço de subtileza, «Sexy – a História da Ana Malhoa». Havia choradeira, cantarolice, fatos apertados e botas gigantes. Uma obra digna de Óscar. Finda a apresentação do «documentário», a senhora grávida toca no assunto que mais arrelia Ana Malhoa: a reacção dos críticos. Valha-nos Deus, que a Ana passou-se logo. Irritava-a a ignorância de quem fala mal do seu trabalho sem o conhecer, dessas más-línguas que não compreendem as maravilhas que ela vomita em fatiotas de napa. Pronto, pronto, lá a acalmaram dando-lhe o docinho: um momento musical todo ele em play-back. Toda sorrisinhos, lá se levantou – ou alevantou, como preferir – a Ana e foi pular para o palcozinho. A seguir, o céu. O poema era de génio – para os padrões actuais – e a voz angelical – tão angelical como a de um barman de cinquenta anos. Despreocupada, ela continuava, a dizer aquelas coisas todas, provavelmente sobre alguém que lhe meteu a cornamenta ou alguém a quem ela a meteu, não interessa para o caso. O que interessa é que quando desliguei a televisão, para finalmente ir à retrete, dei por mim a pensar que o senhor apresentador careca, além de ter pouco do lado de fora da cabeça, também tem pouco do lado de dentro. É que mais valia que a Aninha tivesse mais papas na língua, que assim sempre se poupavam uns decibéis para as gerações futuras.

Deliciosos Delitos

Bruno Vieira Amaral, 19.08.10

Nenhum de nós será virgem na experiência de ser convidado para um delito, tentação que, para os apreciadores do género, entre os quais me incluo, se nos oferece costumeiramente sob a forma de uma mulher que a literatura policial e poetas sem imaginação designam por fatal. Não será este o caso, até porque o convite me foi endereçado por um homem, ainda que em representação de um colectivo que inclui senhoras, senhoritas e, se posso confiar nos meus conhecimentos, um escritor. Confesso, portanto, que foi com o maior dos prazeres (exagero, é claro, como o confirma a primeira frase) que participei no delito e disponibilizo-me às autoridades para explicar os contornos da minha esporádica e deliciosa transgressão.

Macedonio

Bruno Vieira Amaral, 19.08.10

Frase de Macedonio Fernández aproveitada por Julio Cortázar (Papéis Inesperados, Cavalo de Ferro): "São tantos os ausentes que se falta mais um, esse não cabe."

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