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A Douta Ignorância

Política, Economia, Literatura, Ciência, Actualidade

A Douta Ignorância

Política, Economia, Literatura, Ciência, Actualidade

Ironias e cansaços

Tiago Moreira Ramalho, 28.11.10

É de uma ironia deliciosa que João Gonçalves, the one, aponte a qualquer outra pessoa que tenha a felicidade ou a infelicidade de pisar esta terra, o defeito de se julgar mais inteligente do que aquilo que na realidade é. É tão deliciosa a ironia quanto cansativas as picadas insistentes a quem, como eu, nunca fez nada para as receber. É a essência de João Gonçalves, que, de tão vincada e perturbadoramente imutável, deverá certamente ter precedido a existência (who knows?). Quanto ao resto, João, é simplesmente desinteressante discutir contigo. Lês o que queres ler e, quando assim é, vale pouco a pena. Mesmo quando o objecto é um simples título que não tinha ambições de fazer escola, mas simplesmente notar o quão perturbado parece o discurso citado – como parece, e não negamos a possibilidade de ser propositado, toda a restante carta. Continua a fazer, como fazes insistente e quase metodicamente, pouco dos outros, que na realidade estás apenas a fazer pouco de ti próprio.

O Génio Louco

Tiago Moreira Ramalho, 28.11.10

«Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir — instintiva e subconscientemente — uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos — a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.

Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria.»

 

Fernando Pessoa, Carta a Adolfo de Casais Monteiro (13 Jan. 1935)

O texto que nunca escrevi

Tiago Moreira Ramalho, 27.11.10

«It is the unwritten book which might have made the difference. Which might have allowed one to fail better. Or perhaps not.»

George Steiner

 

Digo muitas vezes, tantas que já nem sei se é a sério se a brincar, que a introdução de My Unwritten Books de George Steiner é a coisa mais bonita que já li. Encerra, em poucas, pouquíssimas linhas, a essência cobarde que reside em cada um de nós. Os livros que Steiner nunca escreveu são as declarações de amor que nunca fizemos, são o café que nunca combinámos, são o beijo que sempre tememos. Os livros que Steiner não escreveu são metáfora de todas as nossas frustrações, todos os nossos ‘se’, todas as nossas possibilidades passadas que gostaríamos futuras, na ilusão de que no futuro faríamos diferente. E a introdução de Steiner, que deveria ser conclusão, na verdade, é a elementar evidência de que somos incapazes de não pensar no que teria sido se tivesse sido. Obrigamo-nos a pensar que o mundo, o nosso mundo, teria sido melhor caso tivéssemos escrito o livro que não escrevemos, como se fosse possível fazer tal cálculo. Não é possível. Não sabemos, nunca saberemos o que teria mudado, seja para melhor, seja para pior. O que apenas nos deixa uma alternativa, que sendo única não deveria ter tal nome: olhar para a frente e deixar de pensar na maravilha de vida que nunca tivemos. Até porque - «or perhaps not» - a vida com o livro escrito poderia muito bem ser tão ou mais infeliz que aquela sem livro nenhum.

 

Texto publicado no Delito de Opinião, a convite do Pedro Correia.

Era a conta, se faz favor

Tiago Moreira Ramalho, 27.11.10

Se é certo que o senhor Ricardo tinha ascendência portuguesa, não é menos verdade que os portugueses que vieram à frente não tinham nem têm uma fracção da sua racionalidade. Segundo um estudo europeu – e, leitor, nós temos uma certa desconfiança quanto a estes estudos, mas a verdade é que este confirma uma tendência que todos os nossos dias nos obrigam a ver – os portugueses não querem abdicar do Estado Social, mas, ao mesmo tempo, são o povo europeu que tem menos vontade de o pagar.  É fenomenal, leitor, mas gostamos de borlas, como se elas existissem.

O que nos trouxe aqui não é difícil de identificar. Uma constante lavagem cerebral por parte de uma certa elite política, nem toda de esquerda, que dissocia a despesa pública da cobrança de impostos. Para uma certa elite política, as duas variáveis são completamente independentes e uma não tem de atender à outra. Além desta, há ainda uma outra constante lavagem cerebral por parte de uma elite política que, em larga medida, coincide com a anterior, segundo a qual são aqueles que não precisam do Estado Social que o têm de pagar, ficando os beneficiários no conforto de quem recebe sem sequer perceber de onde.

O facto é que, continuando assim, e até porque as nossas vidinhas não são infinitas, como seria tão bom (ou tão mau), alguém, algum dia, terá de pagar. Se nós, por força das circunstâncias, se os nossos filhos ou netos, é a única incógnita. O resultado mostrará quanta ética ainda nos resta.

Destruição só criativa

Rui Passos Rocha, 26.11.10

Os tempos estão maus para cavaleiros do apocalipse. A queda do muro e o projecto europeu transformaram o continente num laboratório gigante onde dois tipos de bata branca, Hayek e Keynes, conjugam esforços para encontrar a fórmula da prosperidade. Após um século de malfadadas experiências, a sopa do bem-estar parece ser irremediavelmente liberal, faltando apenas quantificar as unidades de tributação e de regulação que devem ir para o caldeirão. O problema - aqui entre nós que ninguém nos lê - é que o tempo azeda as sopas; e não vale a pena congelar, caros soviéticos e cubanos. As rodas do tempo continuam a girar, já cantava o Bob Dylan.

Não quer isto dizer que a carruagem matou Marx por atropelamento. No máximo cortou-lhe uns membros, mas passou ao lado do essencial: a ética. Aquilo que hoje temos como Terceira Via é um sistema económico capitalista regulado por um Estado que faz por garantir direitos laborais o mais de esquerda possíveis. Infelizmente para a direita, uma fraca regulação incentiva a ganância e a formação de oligarquias, em prejuízo da democracia e da qualidade redistributiva; e para mal da esquerda, a elevada tributação em vários dos países europeus, ainda que importante para a redistribuição, desincentiva o crescimento económico sem o qual essa redistribuição começa a falhar. Como parece estar a acontecer em Portugal.

Se se mantém válida a teoria de que os partidos agregam interesses sociais, a ausência de alternativas fortes ao sistema pode indiciar mera falta de imaginação de quem é contra, ou então um Estado Providência em retracção continua apesar de tudo a ser tido como superior às suas alternativas. Os dados sobre atitudes políticas dos portugueses dão-nos o que quer que seja que lá procurarmos: para uns, a insatisfação com o desempenho da democracia, com a classe política e com o funcionamento das instituições pode, como vão dizendo sociólogos, gerar uma revolta social (que, não tendo acontecer na Greve Geral, foi mais uma vez sinal de que o sistema despótico neoliberal aprisiona e aliena as mentes humanas, tornando-nos a todos autómatos, como diria o 5dias.net); para os outros, um escalonamento das atitudes demonstra que a insatisfação com o desempenho temporal do regime não se alastrou, para já, ao regime abstracto. A democracia liberal, com partidos e instituições kelsenianas, é visto como o melhor regime. O problema está em quem o governa.

Sem ideologias, este não é o Fim da História, mas parece um fim de ciclo criativo. Com os seus defeitos, o regime - fortificado pela lei única comunitária - resiste e continuará a resistir à dieta, tanto por mérito próprio como por demérito dos seus detractores. Pelo menos em Portugal, a menos que acabe em anorexia, o Estado Social continuará a ser apoiado. A consequência disso para a democracia e para a prosperidade das sociedades é discutível; mas para quem se situa na margem, mais do que apelar a revoltas estéreis seria importante pensar em alternativas. Que fossem, para variar, viáveis.

O piquete

Tiago Moreira Ramalho, 25.11.10

A instituição nacional do "piquete de greve" é das figuras mais autoritárias que o democratizante Abril criou. Chamar-lhe vandalismo é simpatia.

Como o leitor deverá ter notado, mais não seja por, provavelmente, não ter conseguido chegar a horas ao trabalho ou, quem sabe, por ter realmente faltado voluntariamente ao trabalho, ontem houve greve. Daquelas em grande, pretensamente históricas, que reúnem, à mesma mesa, os já bafientos e empoeirados líderes das centrais sindicais.

Pessoalmente, tenho sérias dúvidas quanto à legitimidade de um "direito" à greve. Do que não tenho dúvidas absolutamente nenhumas é da legitimidade do direito, sem aspas, a não aderir à greve. Se toleramos que um conjunto de pessoas incumpra as suas responsabilidades contratuais como forma de manifestação política, tudo bem - a Nação lá sabe para onde caminha. O que não podemos, de todo em todo, tolerar é que as pessoas que não querem aderir ao protesto sejam a isso forçadas por intimidatórios e muitas vezes bárbaros piquetes de greve.

Sejamos objectivos: o piquete de greve é uma figura anti-democrática. Intimidar as pessoas para que adiram a um protesto é precisamente o mesmo que intimidar as pessoas para que não adiram, apenas varia o sinal. Mais, vandalizar propriedade alheia, como lojas, bancos, escolas, o que for, por forma a impedir os acessos é, mais do que anti-democrático, criminoso. Os senhores Silva e Proença estão muito satisfeitos consigo próprios. Deviam, no entanto, ter vergonha por liderarem organizações que dão cobro a este tipo de comportamentos.

 

Publicado no Expresso Online.

Foi bonita a festa, pá

Rui Passos Rocha, 25.11.10

Alguns seres humanos com espírito de missão qwertyaram a sua indignação para com a casta corporativa da administração pública que - num período em que todos deveríamos dar as mãos pelo crescimento económico - decidiu vir para a rua engrossar a greve. Porque fazem o país perder dinheiro, e não-sei-quê, enquanto os pobretanas dão o lombo e alavancam o pouco que há para alavancar. Não fumaria o cachimbo da paz com um teórico da alienação, mas aos defensores da privatização-desta-merda-toda quero assegurar, abaixo assinado e tudo, que o vosso plano só sai favorecido por greves: na melhor das hipóteses, o grosso dos funcionários públicos não sindicalizados (quase todos) foi para a rua gritar não palavras de ordem mas de dor, tal era o peso dos sacos das compras que aproveitaram para fazer nos privados. E, vejam lá, pelo meio deram um dia de salário ao Rui Pedro Soares, perdão, ao Estado. Por outro lado, mais legitimidade deram ao governo para entregar o volante ao FMI - que inevitavelmente aumentará a competitividade cortando nos salários e na despesa pública com pessoal e com clipes. Não percebo porque não bateram palmas. Os partidos e as suas clientelas vão poder continuar a governar-nos, sosseguem; e desta vez com a palmadinhas nas costas da Alemanha. Afinal, mais pobre menos pobre iniciaremos a caminhada para uma melhor democracia, perdão, para maior prosperidade. A não ser que também vos cheire a fim de festa. Mas animem-se: teremos sempre Paris.

A Greve

Bruno Vieira Amaral, 24.11.10

“Relativamente à minha não adesão à greve, ela não significa, tal como tu avançaste, que esteja «feito com os patrões». Creio que neste momento seja muito mais oportuno fazer horas extraordinárias, em vez de fazer greve. E não me venhas perguntar «porquê» com o ar inquisidor do costume: são coisas que se sentem e acabou.”

 

O Café Debaixo do Mar, Stefano Benni, Ulisseia, trad. Sara Ludovico

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