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A Douta Ignorância

Política, Economia, Literatura, Ciência, Actualidade

A Douta Ignorância

Política, Economia, Literatura, Ciência, Actualidade

More powerful

Tiago Moreira Ramalho, 31.12.11

«Nixon's actions went well beyond the idea that there could be separate standards of behavior at home and abroad: instead he made the homeland itself a Cold War battleground. There, however, he encountered an adversary more powerful than either the Soviet Union or the international communist movement. It was the Constitution of the United States of America.»

 

John Lewis Gaddis, The Cold War.

They’re watching us

Tiago Moreira Ramalho, 31.12.11

A forma como as SCUTs deixaram de o ser deveria ter causado indignação generalizada. Não pelo facto de terem de ser pagas, mas pelo facto de, ao serem electrónicas, implicarem a filmagem dos carros que nelas passam. Significa isto que há um funcionário de uma empresa, num escritório cuja localização desconheço, que consegue saber onde é que eu estou a cada momento se eu passar nas portagens. Isto por si só já constitui um atentado sério ao direito à privacidade, já para não falar dos potenciais atentados que traz à liberdade. Principalmente num país sem tradição liberal, com fortes pendores anti-democráticos e onde a pequena corrupção (‘Eu pago-lhe para que me controle onde anda esta matrícula’) nos invade quase todos os sentidos. E a prova básica destes perigos é que debate nenhum é feito em torno do método, mas apenas e só do pagamento per se. Os arruaceiros algarvios arrancam sensores como o ladrão que cobre a câmara de segurança, não como o cidadão que se quer ver livre de ameaças ao seu bem-estar. Outras entidades da ‘sociedade civil’, como a DECO, preocupam-se com detalhes absurdos – discriminações de pagamentos e bananices dessas. Tudo isto, claro, é complementado por ter sido um governo de direita auto-proclamada liberal a implementar o sistema. Mais vale que nos deixemos de jogos, que rasguemos a Constituição e que demos a chave da porta a um maníaco qualquer. Ao menos acabava a hipocrisia.

A maçã e o pecado original

Rui Passos Rocha, 30.12.11

Há tempos, depois de ter lido o Rui Tavares congratular-se por ter comprado um iPad, escrevi que me parecia contraditório ele ser defensor de um produto que, se aplicadas aos Estados Unidos - e à China - as regras laborais defendidas pelo BE, dificilmente teria sido concebido. À data o Miguel Madeira deu-me conta de que a opinião do RT não é incoerente se ele acreditar que tais políticas não limitariam a criatividade e o plano de negócios da Apple (1). Ele pode até estar errado, mas não é incoerente (2).

 

Concordo. Ainda assim, leituras mais recentes fazem-me pensar que os computadores e tablets da Apple são um bom teste ao punho socialista. Se, por um lado, são tidos como superiores à concorrência em muito do que é essencial (velocidade e falhas do sistema, sobretudo), por outro lado o tratamento dos trabalhadores que os fabricam é deplorável.

 

Como um socialista tende a assentar muito da sua análise da justiça laboral nos direitos dos trabalhadores, a Apple parece-me o tipo de empresa que um socialista junte à sua lista mental de empresas a boicotar - independentemente da qualidade do que essa empresa produz (na verdade muita da concorrência também recorre aos serviços da FoxConn, por isso a escolha não é fácil). Esse não parece ser o caso do RT.

 

Aqui ficam algumas das condições do trabalho na FoxConn (a empresa que produz os iPads e a restante catrefada de iCoisas):

- A semana de trabalho típica é de 72 horas (5);

- Um trabalhador morreu após 34 seguidas de trabalho (4);

- Não é permitido falar (3);

- Não é permitido olhar em volta (3);

- É proibido usar telemóveis dentro da empresa (4);

- Depois de 12 trabalhadores se terem atirado de janelas para a morte, a solução encontrada pela empresa foi colocar redes à volta do edifício para amparar futuras quedas (3);

- Agora os trabalhadores têm de assinar uma declaração em como não tentarão suicidar-se e, caso o façam mesmo assim, as famílias não receberão qualquer indemnização (5).

Ah, afinal era isto

Priscila Rêgo, 25.12.11

O editorial de hoje do Expresso revela bem como é que uma coisa tão inócua como as declarações de Passos Coelho acerca dos professores podem contaminar a opinião pública como contaminaram durante uma semana. O autor, que teve a sensatez de permanecer anónimo, consegue, num texto de quatro parágrafos, abordar o assunto através de três prismas diferentes e cometer a proeza (estatisticamente falando, claro) de meter a pata na poça em todos eles.  

 

O editorial começa bem logo a abrir. "O [erro] mais grave é falar na emigração como uma fatalidade absoluta". Mas quem leu de facto as declarações do primeiro-ministro (um grupo aparentemente muito restrito) sabe que Passos não disse isto. Perante uma pergunta directa - o que fazer? -, Passos limitou-se a avançar duas alternativas ao desemprego: a requalificação ou a emigração. Onde é que está a fatalidade? Pois é. Não está. 

 

No fundo, o editorialista até reconhece que o primeiro-ministro não disse nenhuma mentira. Mas preferia que ele desse de vez em quando "uma mensagem de esperança a todos os que ficam num país que tarda em modernizar-se". Só que uma mensagem de esperança que não assentasse no axioma fundamental da política portuguesa dos próximos cinco ou seis anos - acabou-se o dinheiro - arriscava-se a servir apenas para alimentar sonhos que já não podem ser cumpridos. Uma mensagem de realismo, pelo contrário, pode pelo menos ajudar a que os anseios dos professores se canalizem rapidamente para metas mais razoáveis.

 

Finalmente, o editorialista diz que "falar de emigração não pode ser tabu. Mas o Governo deveter cuidado com esse discurso". E logo a seguir, num assomo de coerência, escreve que "a emigração de professores, quando não decorre de um movimento puramente individual, só pode ser feita no quadro de acordo entre Estados. A única maneira de este processo ter algum sucesso (e lógica) passa por uma negociação liderada pelo Governo português"

 

Ou seja. Se o homem diz, numa entrevista, que os professores sem emprego devem ponderar a requalificação ou, caso não queiram mudar de ramo, a emigração, isto é um erro e um discurso pouco cuidadoso. Mas se depois acrescentar que o Estado está já a fazer acordos de intercâmbio laboral, a pôr os passaportes a imprimir e a publicitar lá fora o professor tuga - ah, bom, aí já não há problema. Se isso tivesse acontecido, aliás, de certeza que o tom do editorial seria muito diferente.

O fim do socialismo

Priscila Rêgo, 21.12.11

Enfim resta-nos a demografia para explicar que o socialismo é inviável.

 

Helena Matos, no Blasfémias.

 

Penso que o que a Helena quer dizer com "socialismo", neste contexto, é o Sistema de Segurança Social contributivo que temos actualmente. Este sistema baseia-se num princípio simples: os portugueses que trabalham descontam uma parte do seu salário todos os meses para pagar o salário (a pensão) dos que já não trabalham. De que é depende a sustentabilidade deste sistema?

 

a) Rácio entre número de contribuintes e número de beneficiários;

b) Tempo de vida a contribuir versus tempo de vida a receber prestações;

c) Valor médio das contribuições e valor médio das pensões;

 

Agora vejamos. Como é que a demografia altera estes parâmetros? Se a esperança média de vida aumentar, o rácio b) altera-se e passa a haver mais pressões do lado da despesa com pensões do que do lado da receita contributiva. Porém, o problema mantém-se caso as reformas passem a ser garantidas numa base de capitalização individual. Em qualquer dos casos, o problema resolve-se subindo a idade de reforma ou mexendo no parâmetro c), o que implica aumentar as contribuições ou reduzir as pensões.

 

E no ponto b), o que acontece? Se a taxa de natalidade diminui, o rácio contribuintes/beneficiários cai. Portanto, e em teoria, quanto menor for a taxa de natalidade, maior será a pressão para acabar com o sistema contributivo actual, dependente deste rácio, e substitui-lo por um sistema de capitalização individual. Será mesmo?

 

Não é bem assim. A "magia" da multiplicação dos pães num sistema de demografia pujante não vem do nada nem cai do céu. Se cada casal tem 10 filhos, os pensionistas de hoje podem de facto ter reformas extraordinárias, mas isto implica um custo grande para os pais dessas crianças: o custo de as alimentar, vestir e educar. Não há almoços grátis. Se queremos que eles nos paguem a reforma um dia, temos hoje de lhes pagar os estudos.

 

Ou seja, num sistema contributivo a diminuição da natalidade deve ser compensada com um aumento das contribuições feitas sobre os salários. Ao contrário do que parece à primeira vista, não há qualquer perda de utilidade: pura e simplesmente, o dinheiro que em circunstâncias demográficas diferentes seria canalizado para os filhos passa a ser canalizado para os pensionistas. Do ponto de vista do consumo individual do contribuinte, a situação é neutra. 

 

Isto não significa que um sistema de capitalizações não tenha vantagens. Algumas delas são o facto de tornar os contribuintes mais responsáveis, alinhar melhor os incentivos, separar de forma mais clara aquilo que é um seguro do que é uma prestação social e por aí fora. Mas fazer nascer dinheiro nas árvores não consta do lote. 

 

Leitura complementar: Take it easy, boys 

Ruído

Priscila Rêgo, 19.12.11

As declarações de Passos Coelho ao Correio da Manhã têm duas dimensões diferentes.

 

A dimensão factual é... vá, factual. Portugal é dos países da OCDE onde há mais professores por aluno. A escola pública não vai (nem deve) ter capacidade para absorver os professores excedentários ao longo dos próximos anos. E a alternativa ao colo do Estado não é necessariamente o desemprego: para além do esforço pessoal da requalificação, há sempre a aventura da emigração. Onde está o escândalo? Se se querem indignar, pelo menos escolham outro país para o fazer.

 

As declarações de Passos não resolvem nenhum problema, mas são importantes por duas razões. A primeira é trivial: lembram a quem perdeu - ou está prestes a perder - o emprego que há alternativas, por muito inconcebíveis que ainda possam parecer nalguns sectores profissionais (o tempo mudará isto). Mas a segunda é mais importante: as declarações sinalizam aos professores a gravidade da situação. Quem estivesse a pensar  atrasar a requalificação ou desperdiçar oportunidades de emprego na expectativa de que a torneira do Estado voltasse a abrir, irá agora pensar duas vezes. 

 

Só que o discurso também tem uma dimensão política e essa, compreendo, pode ser um tiro no pé. Porque dá a entender ao povo que o Governo está mais preocupado em varrer os desempregados para debaixo do tapete do que em voltar a dar-lhes um lugar à mesa; porque pode ser lida como um "sacudir de água do capote" num país que precisa de união para ultrapassar um das crises mais difíceis da sua história democrática. Um político numa entrevista não é um técnico num gabinete de estudos.  

 

Perante isto, há duas reacções possíveis. Podemos lembrar a dimensão factual das declarações e assim ajudar a apaziguar os ânimos mais exaltados. Ou enfatizar a sua dimensão política e contribuir para enganar os tolos

As consequências

Tiago Moreira Ramalho, 19.12.11

 

O que se celebra na morte de Kim Jong-il não é um pedaço de pó gordo e com óculos que regressa à terra, mas um pedaço de pó gordo e com óculos que deixa de a ameaçar. Não é a morte em si que despoleta gáudio geral – é a consequência dela. Da mesma forma que não era a sua vida que nos aborrecia, mas a consequência dela. O que não deixa de ser um problema francamente interessante.

Desejos

Tiago Moreira Ramalho, 18.12.11

Apesar de muitos dos nossos marxistas nunca terem lido mais do que o Avante!, essa narrativa em folhetins da decadência de uma certa esquerda portuguesa, a verdade é que eles reproduzem de forma bem catita um desejo muito marxista relativamente ao papel do trabalho na vida das gentes. A ideia de que a divisãodo trabalho desumaniza o homem, que o torna um alienado até de si próprio e que a especialização impede que o trabalho assuma a sua forma suprema: a expressão da natureza do próprio homem. Claro que os nossos marxistas não dizem isto, muito menos desta forma. Eles falam no direito a trabalhar no que se gosta (seja ou não de forma especializada), o que nem parece absurdo – a ideia é até bastante apelativa, diria eu.

O problema é que isto é de facto mero desejo. E um desejo bastante capitalista, diga-se, no sentido em que uma aproximação deste estado em que trabalho e lazer se tornam um só só é possível com os desenvolvimentos que o capital traz. Imaginará alguém que o homem nos primórdios da espécie encarava a caça e a colocação da sua própria vida em risco como uma expressão última da sua essência? Não me aventuro em contendas existencialistas, mas resta pouca essência para exprimir quando a existência finda.

O desejo marxista de um homem sem a escravidão do trabalho, que pode ser artesão de manhã, bailarino à tarde, pugilista à noite parte de um erro de análise fundamental: o de que a sobrevivência não está em risco. E para sobreviver, lamenta-se, não podemos simplesmente espalhar-nos a nós mesmos e à nossa essência connosco sem arranjar pão para pôr na mesa. Não é por acaso que os Estados que certo dia se lembraram de libertar o homem da escravidão do capital foram precisamente aqueles que trouxeram as mais abjectas formas de escravidão ao século XX.

 

O Acontecimento

Bruno Vieira Amaral, 15.12.11

 

M. Night Shyamalan gosta de brincar com géneros, de desmontar os códigos narrativos. Ao mesmo tempo, os seus filmes têm uma respiração metafísica, uma espiritualidade vaga que parece estar ali apenas para nos distrair dos truques de argumento. É como se ele nos dissesse: “vou fazer isto muito devagarinho para não se concentrarem na brincadeira.” A brincadeira, o lado lúdico do cinema de Shyamalan, é evidente em O Sexto Sentido (história de fantasmas), O Protegido (BD), Sinais (invasões de ETs), A Vila (monstros) e A Senhora da Água (contos de fadas). Enquanto brincava, a câmara mantinha-se séria e circunspecta. Há momentos, nos primeiros filmes de Shyamalan, de uma insuportável – para os padrões de Hollywood – lentidão. Isto juntava-se a ambientes mais intimistas (as crises conjugais em O Sexto Sentido e O Protegido, a crise de fé em Sinais) para criar um efeito de densidade que atingiu o máximo das suas possibilidades em A Vila, um filme na fronteira entre o denso e o balofo, entre o sério e o risível, entre o profundo e o pretensioso, quase sempre caindo nos últimos. Era um filme que rebentava de vontade de significar alguma coisa mas, como o realizador ainda não prescindira dos célebres twists e, no fundo, continuava a brincar com códigos, era como se estivesse também a brincar aos significados e à espiritualidade. Creio que, na altura, Bénard da Costa, escrevendo sobre A Vila, falou de Dreyer, mas isso era o mesmo que comparar um ilusionista com um santo, um mágico com alguém que opera verdadeiros milagres. Se Shyamalan acredita em alguma coisa, é no cinema e na narrativa. A metafísica das suas obras é metafísica cinéfila, é um cinema religioso no sentido em que a sua religião é o cinema. Não há mais do que isso e isso já é muito. O problema foi atribuir às suas obras uma profundidade espiritual que, na verdade, não existe. A questão espiritual, como a das crises conjugais, é funcional, está lá para aguentar a narrativa, mas não é religiosa num sentido sério. Em Sinais, a fé é apenas uma peça da engrenagem narrativa. Haverá algum espectador que sinta uma verdadeira inquietação espiritual depois de ver o filme? Sinais é um filme que só perturba epidermicamente. O máximo que provoca é uma comichão espiritual. E o mesmo é válido para qualquer um dos filmes de Shyamalan. Por isso é que O Acontecimento é um bom filme, porque é só cinema, não quer ser mais do que cinema, não pede outra leitura, não quer significar (e em Shyamalan, como vimos, querer significar é apenas uma manobra de diversão para ocultar as astúcias do argumento). E não fazendo de conta que tem muito para dizer espiritualmente, acaba por dizer mais cinematograficamente. Aqui, o Mal não é um conceito ontológico, é um conceito cinematográfico. O filme não é uma investigação sobre a natureza do mal, mas uma exploração das possibilidades de representação cinematográfica do Mal. Que o Mal aqui seja invisível, só reforça os méritos dessa exploração. É Os Pássaros sem pássaros. O início, completamente série B, sem prólogos de boas-vindas para acomodar o espectador, e a duração do filme (hora-e-meia) são os dois sacramentos da religião do cinema. A crise conjugal e o milagre quase no fim também não pedem sobreinterpretações. São fios do argumento. Qualquer leitura ecológica, espiritual, metafísica, etc, é lixo. Os Pássaros não é um estudo ornitológico, Tubarão não é sobre o comportamento dos tubarões, Alien não é sobre espécies alienígenas. São filmes sobre cinema e sobre o medo – a mais cinematográfica das emoções. O Acontecimento é isso. Não queiram que seja outra coisa. E espero que Shyamalan não queira ser outra coisa.

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