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A Douta Ignorância

Política, Economia, Literatura, Ciência, Actualidade

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Há coisas que me irritam

Priscila Rêgo, 06.03.12

E esta é uma delas. O Ricardo Campelo Magalhães (numa cruzada em que está muito bem acompanhado) acha que não há nenhuma diferença entre um ser humano dentro e fora da barriga da barriga materna. Logo, conclui o Ricardo, quem apoiou a despenalização do aborto deve, por imperativo lógico, aceitar igualmente o aborto pós-Natal, tal como defendido por um grupo de médicos (?) numa revista. 

 

O post chama-se "Esquerdas Coerentes" e, apanhando a deixa, eu gostaria de pôr a do Ricardo à prova. Nomeadamente, gostaria de lhe perguntar se ele defende que uma mulher que aborta deve ser criminalmente equivalente a um homicida, com todas as implicações legais que daí se retiram, e se a morte de um zigoto o incomoda tanto como a morte de um ser humano com braços e pernas. É que esta coisa da coerência não pode funcionar só para um lado. 

 

Pessoalmente, o requisito de coerência nem me parece especialmente complicado. O pessoal mais encostado à direita tende a atribuir direitos com base na presença do sujeito em causa no grupo restrito dos "seres humanos", o que obriga a que se delimite de forma precisa este conceito. Normalmente, o critério costuma ser biológico: se é da nossa espécie é humano, se não é, não é humano. E isto obriga-os a uma dicotomia difícil de gerir, em que um embrião é moralmente equivalente a um adulto completamente formado e um tipo simpático como o Clark Kent seria eticamente destituído de direitos. 

 

Felizmente, é possível fundar os direitos éticos em alicerces mais seguros do que a simples partilha de um património genético. A capacidade de sofrer ou de ter prazer, de ter consciência ou senciência, por exemplo, parecem critérios muito mais aceitáveis e promissores para erigir uma estrutura ética da qual retirar umas pinceladas para o nosso ordenamento jurídico. 

 

Friso o "pinceladas", porque, para todos os efeitos, os insights que tirarmos daqui raramente poderão ser transpostos tal e qual para o nosso quadro legal. Por exemplo, a ideia, que se retira do princípio anterior, de que temos obrigações éticas para com alguns animais, dificilmente se poderá traduzir em penas efectivas para quem bater no cachorro que vive nas traseiras ou maltratar os bovinos no estábulo. Pura e simplesmente não há forma de garantir um "enforcement" desta regra. 

 

Mas uma "pincelada" aceitável a tirar daqui é que proibir as touradas, por exemplo, é um bom princípio por onde começar. Ao contrário do que acontece com os maus-tratos a animais domésticos, é relativamente fácil garantir o cumprimento desta norma. [Maus tratos a crianças são um caso diferente. Há vários mecanismos sociais - da má língua da vizinha à preocupação dos familiares - que tornam viável uma proibição neste domínio]

 

Finalmente, e voltando ao aborto, a questão difícil: e a partir de quando é matar o feto deve ser crime? Do que se disse atrás, a resposta é óbvia. Não há um momento fundador a partir do qual do qual um feto inerte passa a humano de pleno direito. Os direitos vão-se ganhando aos poucos. O zigoto não terá grandes direitos, mas um feto de 7 meses terá seguramente alguns. Em termos práticos, a decisão envolverá sempre alguma arbitrariedade, tal como a escolha dos 120km/h e dos 18 anos. Este facto trivial não deve contudo servir de desculpa para que não se crie velocidades máximas nas autoestradas ou idades mínimas para votar. 

 

 

3 comentários

  • Sem imagem de perfil

    Luís Lavoura 07.03.2012

    Mesmo quando havia penalização do aborto, essa penalização era bastante inferior à do assassínio, o que significa que, para a lei, o feto tinha de facto menos valor que um ser humano.
    E é esse o sentido da ética corrente. Por exemplo, a Igreja Católica nem faz funerais cristãos para nados-mortos com menos de seis meses de gestação (salvo erro). Considera, quiçá, que eles não têm alma...

    o radicalismo aqui apresentado pelo Luís Lavoura

    Não vejo que radicalismo é que eu aqui tenha apresentado.

    parece-me essencial que a lei tenha como critério, em matéria de valorização ética, a prudência

    Exatamente, foi basicamente isso que eu disse, que se deve ser prudente na valoração da ética, ou seja, não se deve ser fundamentalista no apego a uma qualquer ética, por bem fundamentada e lógica que esta pareça ser.
  • Sem imagem de perfil

    NS 07.03.2012

    Repare que eu não estou contra uma valorização ética distinta para o zigoto, mas o que me parece é que a lei actual faz com que seja equivalente a um objecto e isso parece-me excessivo.
    Quanto ao seu radicalismo, a ideia que queria transmitir é que o que se infere do seu comentário sobre a imposição de conceitos éticos a um povo é excessivamente radical. Eu tenderia a concordar consigo, de modo geral, mas há sempre um limite - para ilustrar bem tem o caso da excisão feminina, prática eticamente aceite por algumas culturas e cujo fim deveria poder ser imposto por via legislativa.
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