Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

A Douta Ignorância

Política, Economia, Literatura, Ciência, Actualidade

A Douta Ignorância

Política, Economia, Literatura, Ciência, Actualidade

Macaquinho de imitação

Vasco M. Barreto, 18.09.12

Termina aqui a minha muito pontual participação. Agradeço ao Bruno o convite, lamento que a minha última contribuição substancial tivesse sido sobre retretes e espero que a equipa se reúna uma última vez para pensar o país diante de umas cervejas. 

 

 

 

Os agarrados da estabilidade

Vasco M. Barreto, 27.03.12

Given the weaker barriers to ending same-sex relationships, we might anticipate that there would be fewer long-term relationships among lesbians and gay men compared with heterosexuals. Unfortunately, we currently know little about the longevity of same-sex relationships. No information comparable to divorce statistics for heterosexual marriages is available. Several studies have documented the existence of very-long-lasting gay and lesbian relationships (e.g., Johnson 1990, McWhirter & Mattison 1984). Longitudinal studies provide further clues about relationship stability. In a five-year prospective study, Kurdek (1998) reported a breakup rate of 7% for married heterosexual couples, 14% for cohabiting gay male couples, and 16% for cohabiting lesbian couples. Controlling for demographic variables, cohabiting gay and lesbian couples were significantly more likely than were married heterosexuals to break up...  Annual Review of Psychology (2007) Vol. 58: 405-424

 

Nas suas crónicas "A Adição Gay" (I e II) e na discussão que tem prosseguido com a Ana (Matos Pires), Pedro Picoito foi acusado de usar referências bibliográficas antigas. Esta é a mais actual, entre as robustas, que consegui encontrar. Curiosamente, apesar das diferenças de grau, a conclusão vai no mesmo sentido das conclusões dos artigos que o Pedro cita. Admitindo que há agora consenso sobre este detalhe, só precisam de me convencer das virtudes da estabilidade do casal a qualquer preço para a vida dos filhos. Podem usar referências bibliográficas de qualquer ano e também os conselhos do pároco da vossa comunidade, que devem vir assinalados com a expressão "personal communication" entre parêntesis.

Portugal visto da retrete

Vasco M. Barreto, 16.02.12
Creio que existe já uma tese de mestrado sobre a prosa e contribuições pictóricas nas portas dos lavabos públicos e a vida é demasiado curta para andarmos a replicar o trabalho dos colegas. Sei também que argumentos que incluam a palavra "retrete" estão para a retórica como a fart joke para o humor. Mas acreditem que a ideia não era mostrar pirilaus por dá cá aquela palha. Ainda que frequente este local esporadicamente, vou lá as vezes suficientes para registar um antes e um depois; o antes, como terão já deduzido, era a porta sem o aviso colado. O resultado final parece-me um retrato bem conseguido de um país, mesmo havendo quem insista na tese de que não devemos atribuir traços de personalidade aos povos - é mais uma daquelas  teses que fica bem enunciar, para depois poder não cumprir.  E então é isso mesmo: o país da bola e do sexo, boçal e animalesco no seu acto de baixar as calças e escrever sentado e desatento ao respingo versus o Portugal cívico, cosmopolita e de mãos lavadas, que sabe usar negritos e impressora para lutar pelo que realmente interessa (a higiene), sem acumular o impulso censório de ocultar nus. Em síntese, o que temos aqui é a civilização a emergir da barbárie. Portugueses, pode não haver dinheiro, mas ainda há esperança.

Envidia sana

Vasco M. Barreto, 31.01.12

 

A maior biblioteca não se encontrava em Alexandria, nem é hoje a Library of Congress dos 29 milhões de livros. Também não é a biblioteca de Babel inventada por Borges, com as suas infinitas salas hexagonais, ainda que afirmá-lo pareça tão ridículo como dizer que o infinito peca por defeito, e até um sacrilégio, por ser Borges. Porquê correr tais riscos, então? Porque quem fez a Biblioteca de Borges chegou à omnisciência pela omnipotência, inventando todos os livros sem precisar sequer de os saber ler, bastando-lhe um passado eterno gasto a combinar todos os símbolos ortográficos de todas as formas possíveis, e todas as palavras, todas as frases, todos os parágrafos, todos os capítulos. Enfim, as interpretações para este delírio do porteño são várias, mas sirvo-me desta: a sua biblioteca é distópica, pois corresponde a um genocídio dos autores, enquanto as nossas finitas e concretas bibliotecas testemunham a vitória de cada autor sobre o seu previsível suicídio. A maior biblioteca de todas será a dos livros que foram pelo menos alguma vez imaginados por alguém. Não tem morada, como a Library of Congress, mas são mais as pessoas que a visitam e para ela contribuem; também não tem tamanho, na verdade, o que a deixa a salvo da trapalhada que Borges criou, uma quadratura do círculo em versão de hexagonalidadedo infinito, ou não fosse o hexágono uma solução perfeita das abelhas para o aproveitamento do espaço, mas que, justamente por isso, só faz sentido na finitude.

 

Sabem do que falo. É a biblioteca onde guardamos o grande livro de História do senhor que também gostaria de escrever a biografia de Hitler mas não sabe Alemão, o livro de ideias políticas que um amigo garante que um outro senhor sempre muito ocupado ainda escreverá, o romance sobre Paris que uma senhora já desistiu de anunciar, os planos por concluir de Pessoa, os tópicos de Luiz Pacheco, e aqueles recorrentes projectos editoriais megalómanos que as versões de autor em pdf não saciam, como a tal Spectatorà portuguesa - se não quisermos sair da paróquia que é Lisboa, nem recuar muito, nem ser exaustivo. Aliás, para intuir a vastidão da grande biblioteca contam menos os figurões e os malucos do que os nossos devaneios pessoais e os daqueles mais próximos, quando se deixam ir pela vaidade, ou não controlam a ansiedade, ou se convencem que o tesão criativo não murcha com a partilha do plano.

 

Em 2008, quando o Nuno Costa Santos me falou da ideia de escrever uma biografia do Assis Pacheco, não hesitei em arrumar logo o instantâneo volume na grande biblioteca. Pareceu-me uma belíssima ideia que ele jamais realizaria e escolhi uma boa encadernação. É claro que nada lhe disse, mesmo quando essa certeza foi crescendo à custa das respostas evasivas que ele depois começou a dar. Estava preparado para o perdoar, pois não seria mais um projecto pessoal falhado a trazer mal ao mundo, há um vasto corpo teórico a que podemos recorrer (a "vitória moral", o "Try again. Fail again. Fail better", o "Se hace camino al andar", o sportinguismo) e sempre que o homem sonha e a obra não nasce fico com a sensação de que, na verdade, Deus não tem um problema pessoal comigo, o que consola. Só que o Nuno pariu mesmo o livro e o meu alívio mesquinho transformou-se em envidia sana, uma sensação tão rara que gerações de linguistas, atarefados com as consonantes mudas, nunca entenderam ser urgente inventar-lhe uma expressão em Português.

 

Dou-te já os parabéns pela lombada, Nuno, ainda antes de ler a obra. Porque, no fundo, ninguém acredita naquele corpo teórico; materializar é o verdadeiro livre-trânsito para continuarmos a sonhar.

Publicado também aqui

A vis vitalis do FC Barcelona

Vasco M. Barreto, 26.01.12

Não leio a imprensa desportiva com a regularidade que provavelmente seria recomendada para a escrita desta entrada, mas tenho a intuição de que seria interessante uma tese de doutoramento - enfim, talvez apenas um mestrado - sobre o modo como a análise técnica do futebol publicada na imprensa e discutida na rádio e televisão evoluiu ao longo das últimas quatro ou cinco décadas, da sua complexidade intrínseca aos paralelos com as teorias de interpretação que foram aparecendo noutros domínios, o que implicaria um trabalho de mapeamento prévio para encontrar o Carlos Daniel e o Luís Freitas Lobo dos mil novecentos e sessentas (ou explicar as suas ausências), algum aparato estatístico, referências a Umberto Eco e a um qualquer dos franceses. A minha tese seria simples: caminhamos para a completa mistificação - e em vez de termos parado na metafísica, o que seria recomendável, entrámos já no domínio da pseudociência; mas isto pede à Epistemologia menos do que pede à Sociologia (pressão dos pares e subida da educação média dos apreciadores do fenómeno desportivo). Estas manifestações incluem os muito gozados barroquismos de gramática e lexicais dos intérpretes da bola (de Gabriel Alves a Rui Santos), mas é no modo como se vai pensando o futebol que atingimos o êxtase. E o excepcional futebol do FC barcelona dá-nos a melhor matéria-prima.

 

"No fundo, a pergunta básica da Filosofia (como a da psicanálise) é a mesma do romance policial: de quem é a culpa?", escreveu o Eco. Ora, nos últimos dias chegámos a um novo cúmulo interpretativo e, por causa de umas declarações de Pep Guardiola, o culpado está encontrado: é o Busquets. Ainda a estupefacção não assentara, já corria doutrina a explicar ao povo aquilo que ainda ninguém tinha visto ou a que não dera o devido valor (1,2). Não faço a menor ideia se o Busquets é o segredo do FC Barcelona. Não sei se Pep Guardiola disse o que disse por ser mais amigo da verdade ou do balneário. Mas suspeito que esta tese vinga porque é contra-intuitiva, o que faz com que o intérprete brilhe com indisfarçável ansiedade e orgulho. Estamos tão fartos do excepcional futebol do Barcelona como em tempos estivemos fartos do Serguei Bubka, mas como ainda estamos mais fartos das explicações (a Cantera, a identidade cultural, o baixo centro de gravidade do meio-campo, o Messi, o Iniesta, o Xavi - e todas as combinações com dois destes elementos), qualquer novo dado interpretativo entusiasma o adepto tanto como uma nova relíquia entusiasma o crente ou uma nova teoria entusiasma o jovem académico. Que venha então o Busquets. Amanhã será a perturbação electrostática que emana dos caracóis do Pujol. E depois será a sopa da mulher-a-dias do Piqué, que dá solidez à defesa porque tem propriedades calmantes. Dito isto, ontem gostei muito de ver o Ozil.

 

 

 

Muito barulho por nada

Vasco M. Barreto, 11.01.12

Irrita-me a emergente guerrilha que, depois de uns 4 anos de relativa tranquilidade, volta a berrar nas colunas de jornal contra o opressor "fascismo higienista". Irrita-me a sua retórica ridícula de derradeiros paladinos da liberdade; irrita-me a sua mitologia, servida por mentiras que fazem de Nova Iorque o novo Gulag e, até prova em contrário, uma cidade sem restaurantes. Reconheço que não é fácil defender uma alteração para uma lei anti-tabaco mais restritiva. Seria uma injustiça para os comerciantes que fizeram investimentos nos seus estabelecimentos por causa da lei anti-tabaco de 2007, a menos que fossem compensados. E uma lei anti-tabaco mais restritiva passaria a ser diferente, no "espírito", da lei que combate a poluição sonora. Admitindo que ninguém - tirando o Doutor Vasco Pulido Valente, fiel à ciência do século XIX - põe em causa que a exposição (passiva) continuada ao fumo do tabaco, tal como a exposição continuada a ruídos acima de uma determinada intensidade, faz mal à saúde, por que motivo devem estas leis ser diferentes? Ora, se nada me escapou na leitura apressada que fiz da lei do ruído, esta protege-nos exclusivamente - ainda que por vezes só em teoria - das agressões sonoras vindas de espaços privados e públicos que podemos evitar, deixando ao cuidado de cada um a decisão de destruir os seus ouvidos e a sua estética dentro de discotecas. Mas, enfim, talvez estejamos mesmo perante uma inércia cultural que parecerá caricata daqui a 50 anos e talvez a lei do ruído não seja um bom termo de comparação, visto que o fumo consumido de forma passiva por causa de um prazer alheio é a terceira causa de morte evitável, logo a seguir ao fumo consumido de forma activa e ao álcool. Convenhamos que a surdez não mata e, com o alarido que anda por aí, até deve consolar. 

 

O" superior interesse da criança"

Vasco M. Barreto, 10.01.12

Em última análise, depois de lhe retirarmos eventuais preconceitos de ordem religiosa, homófoba ou outros, a resistência a novas formas de procriação e de organização familiar radica num único princípio, o “superior interesse da criança”. O “superior interesse da criança” postula que a criança precisa de um casal heterossexual e, como a maior parte da população foi gerada e criada assim, ir contra tal ideia é tão herético como tomar partido quando nos perturbavam a infância com o “gostas mais do pai ou da mãe?” Mas mesmo sem perder uma linha a tentar rebater o princípio, convém lembrar que as pessoas não têm filhos por causa do “superior interesse da criança”, entre outras razões porque a criança ainda não existe. As pessoas - todas as pessoas - têm ou adoptam filhos porque sentem que isso lhes completa a existência, ou seja, por egoísmo. O poder do Estado para modular esse desejo é algum (os incentivos à natalidade, etc.), mas limitado, e desde que exista a possibilidade técnica de ter uma criança, os pais em potência não vão desistir. Como só um Estado totalitário pode contrariar essa obstinação, na prática o “superior interesse da criança” não pode funcionar a anteriori numa sociedade decente e ser aplicado de um modo - digamos - “preventivo”. Daqui decorre que leis que proíbam ou omitam determinados cenários - como a co-adopção de crianças por casais do mesmo sexo e a procriação medicamente assistida acessível a mulheres sem parceiro masculino - são uma espécie de suicídio legal, porque violam o interesse superior que tentam proteger. É o que sucede com a lei do casamento para pessoas do mesmo sexo e a lei que regulamenta a procriação medicamente assistida. Nasceram tortas e é tempo de as endireitar.

 

Coluna de ontem, publicada naquele jornal que não paga aos seus cronistas.

Liberdade, razão, generosidade e coragem

Vasco M. Barreto, 02.01.12

Os últimos dias de Dezembro são os mais livres. É a sofreguidão de antecipar o balanço do ano e a memória curta a libertá-los da História, e é o equilíbrio entre as frustrações do ano findo e o optimismo do renascimento vindouro a dar-nos – enfim, a dar-me, que cada um sabe de si – uma sensação de imponderabilidade, como a bola lançada ao ar no exacto momento em que já não sobe e ainda não desce. Mas, por estes dias, também senti a vã obrigação de escolher a “figura do ano”. Sem hesitar, a palma vai para Yasuteru Yamada, o reformado engenheiro japonês de 72 anos que tentou recrutar um grupo de companheiros do autodenominado (mas não são terroristas) “Skilled Veteran Corps” para dar uma mãozinha nos trabalhos de contenção da fuga radioactiva provocada pelo acidente na central nuclear de Fukushima. É longo o eco desta notícia na cabeça do ocidental, por causa de Hiroxima e Nagasáqui, mas também porque o Japão é o país em que um forte sentimento de honra deu ao mundo um ritual de suicídio violento (o harakiri) e que na Segunda Guerra Mundial criou a carreira com menores perspectivas de futuro. Inevitavelmente, um idiota útil perguntou se Yamada era um “kamikase”, ao que o nosso homem respondeu com o invejável eufemismo nipónico, lembrando que no caso dos aviadores mártires não havia grande “gestão de risco”. Yamada frisou sobretudo a lógica: na sua idade, o efeito mais pernicioso da radiação (um cancro que demora décadas a manifestar-se) seria muito menos dramático do que num indivíduo mais novo, com uma esperança de vida maior. Daí o absurdo de comparar a decisão racional, mas generosa e corajosa, de um cidadão livre com o horror de um sacrifício pela pátria que só a propaganda de Estado fez passar por voluntário.

 

No "i", hoje.

Pub

Vasco M. Barreto, 05.12.11

Esta semana, no portal da Fundação Francisco Manuel dos SantosAntónio Figueira, Miguel Morgado,  Rui Tavares e Miguel Poiares Maduro vão discutir a Europa. Eu apenas faço as perguntas. Agradecia que divulgassem o anúncio nos blogs políticos.

 

António Figueira é licenciado em Direito, mestre em Relações Internacionais e doutorado em História Contemporânea. Durante quase duas décadas, foi funcionário europeu e diplomata, em Bruxelas, Londres e Estrasburgo. Foi ainda docente do ensino superior e director de uma agência de comunicação. Actualmente é assessor do Ministro dos Assuntos Parlamentares e escreve na imprensa sobre assuntos europeus. Tem trabalhos publicados na área dos estudos europeus e, em 2004, pelo seu livro "Modelos de Legitimação da União Europeia" recebeu o Prémio Jacques Delors para melhor estudo académico sobre temas comunitários. 

 

Miguel Morgado é doutorado em Ciência Política, ensina História do Pensamento Político e Ciência Política no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica. É também professor visitante da Universidade de Toronto. Em 2010, escreveu o ensaio "Autoridade", que a Fundação Manuel dos Santos incluiu na colecção que tem vindo a publicar. 

 

Rui Tavares é deputado no Parlamento Europeu, historiador especialista em história e cultura do século XVIII,  escritor, tradutor e colunista na imprensa. 

 

Miguel Poiares Maduro é Professor no Instituto Universitário Europeu (UIE) de Florença, Professor Convidado da Yale Law School, docente na Universidade Nova de Lisboa, leccionou na University of Chicago Law e na London School of Economics e foi investigador convidado em Harvard. Advogou no Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias. Tem uma comenda da Ordem de Santiago da Espada por mérito literário científico e artístico, venceu o Rowe and Maw Prize e a sua tese de doutoramento valeu-lhe o prémio Objettivo Europa. Em 2006 publicou “A Constituição Plural - Constitucionalismo e União Europeia”.