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A Douta Ignorância

Política, Economia, Literatura, Ciência, Actualidade

A Douta Ignorância

Política, Economia, Literatura, Ciência, Actualidade

Livre-arbítrio [2]

Rui Passos Rocha, 31.07.10

A própria ideia de uma personalidade é anti-cristã: o cristianismo refere expressamente que todo o homem tem uma alma indivisível, em contacto com o Supremo, a qual deverá por aprendizagem terrena apropriar-se da moral divina e sustentar as atitudes humanas. O Homem moderno, porém, estimula a sua personalidade, mesmo crendo na existência de uma ou, como escreve Tabucchi no Sostiene Pereira, de mais de uma alma dentro do corpo - sendo que, nesse caso, haveria uma alma hegemónica hoje e outra, possivelmente, amanhã. Uma ideia - esta das múltiplas almas - que não é mais do que a de personalidade, um conceito que esvazia o poder moral da religião.

Uma casa para o senhor Vergílio

Bruno Vieira Amaral, 31.07.10

Publicado no i

 

“Criado no artificioso, na mecânica doméstica de um pensamento obsessivo, que passa de geração em geração na minha família, eu vivia afastado da Natureza e chegava mesmo a duvidar da sua existência.” P. 154

 

No centro de A Vida Verdadeira, romance de estreia de Vasco Luís Curado (n. 1971), está uma quinta cercada por um muro. Vergílio, o narrador, é o derradeiro guardião desse espaço ameaçado pela expansão urbanística. A visita dos agentes imobiliários empurra-o para uma sucessão de recordações, da infância à idade adulta, em que reflecte sobre a sua separação da vida verdadeira, de tudo o que acontece para lá dos muros e das palavras. Não sendo o que se designa de romance de ideias podemos dizer que A Vida Verdadeira é um romance em que as ideias delimitam a narrativa. A ideia mais forte, a âncora do narrador, é a do indivíduo enquanto portador temporário do testemunho da família, enquanto elo transitório de uma cadeia que o transcende. Nos atavismos e na preservação da memória, Vergílio prolonga o todo que é a família. A educação da criança enquanto disputa entre duas forças antagónicas, a domus e a polis, é a outra ideia-base do livro. A escola (símbolo do mundo dos homens) procura resgatar a criança das garras da protecção doméstica, ou seja, quer dar à criança referências do mundo exterior, enquanto que a mãe quer mantê-la num estado uterino. A escola é um útero masculino, berço de cidadãos. No caso do protagonista, é a força materna que leva a melhor. Demasiado protegido, ele está separado do mundo pela grade verbal erguida pela mãe. As palavras são mais importantes do que as coisas; não lhe servem para desvendar o mundo, mas para o manter a uma distância segura. Vergílio fica à beira-vida como em criança ficava à beira-mar, porque a mãe queria “transformar o mar num tanque infantil que não oferecesse perigos” (p. 26). A viagem que planeia com a irmã, e que não chegam a realizar, é o símbolo máximo do desfasamento entre o mundo enquanto verbo e a realidade empírica.

 

A Vida Verdadeira tem fragilidades como o recurso frequente a advérbios de modo, algumas expressões anti-literárias e inestéticas e histórias laterais que, não sendo más, não são embutidas de forma graciosa no conjunto. Mas com este romance, Vasco Luís Curado conquistou, pelo menos, o direito a uma segunda oportunidade para corrigir estas falhas menores.

Uma zaragata familiar

Tiago Moreira Ramalho, 31.07.10

Definir a Primeira Guerra Mundial como uma zaragata familiar pode parecer quase jocoso, mas, de facto, a realeza europeia, no início do Século XX, era perturbadoramente «familiar». Graças à esperteza de uma pequena família alemã, os Saxe-Coburg, que se relacionou de forma extraordinária com todas as casas reais europeias, tínhamos, em 1914 uma Europa cujas coroas se tratavam por diminutivos carinhosos. A própria rainha Vitória temeu pela saúde e sustentabilidade da família, defendendo, a certa altura, a entrada de «sangue novo», para que as novas gerações não sofressem de males como a hemofilia – no princípio do Século XX, sete membros da família sofriam da doença –, os quais estão intimamente ligados ao inbreeding. Para que o leitor se aperceba da dimensão do fenómeno, em 1901, quando a rainha Vitória morreu, havia sangue dos Saxe-Coburg nas casas reais da Grã-Bretanha, da Irlanda, do Império Austro-Húngaro, da Rússia, da Dinamarca, de Espanha, de Portugal, da Alemanha, da Bélgica, da Grécia, da Roménia, da Bulgária, da Suécia e da Noruega.

Jornal Logico-Philosophicus

Tiago Moreira Ramalho, 31.07.10

No Expresso vem uma entrevistazinha com a Ministra da Educação, a que escreve. A coisa é francamente aborrecida, mas vale a pena realçar um ponto. Acontece que, na peça, se fala dos chumbos lá fora, no estrangeiro. E dá-se o exemplo da Finlândia, Suécia, Noruega e Dinamarca, onde as taxas de retenção não chegam a 1%. Depois diz-se que, vai na volta, é bom não chumbar, porque aos 15 anos a apenas 1% dos alunos faltam competências básicas de leitura. Percebeu, leitor? Nos países nórdicos, os alunos sabem porque não chumbam; não passam porque sabem. Já no jornalismo português, julga-se que tudo é uma questão de perspectiva. Não é.

O mal da raça [3]

Tiago Moreira Ramalho, 30.07.10

Claro que poderíamos, numa cambalhota epistemológica das da moda, afirmar que o processo está mal explicado. Que, na realidade, não se dá o caso de as fêmeas desgostarem dos génios, mas sim de desgostarem de machos que, por isso, acabam por se focar em actividades para-sexuais, como as artes e as letras, a fim de se completarem. O resultado seria o desmoronar de uma teoria fabulosa, pelo que não o posso aceitar.

O mal da raça [2]

Tiago Moreira Ramalho, 30.07.10

Ao tornar-se evidente a preferência generalizada das fêmeas pelas bestas, os machos não bestiais acabam por, num mecanismo de auto-defesa, abandonar pretensões amorosas e, por consequência, reprodutivas. É aqui que a decadência da espécie de acentua, pois os únicos que nos poderiam salvar da selvajaria acabam por perder interesse na própria espécie. Tal como escreveu Pedro Mexia em tempos idos, do grupo composto por Kierkegaard, Machado, Nietzsche, Tchekhov, Kafka, Eliot, Beckett, Pavese, Cioran não houve descendência conhecida. E se aqui temos a Literatura e alguma Filosofia, podemos ir a mais alguma Filosofia, a três ou quatro ciências (das a sério, não as sociais, que são o oásis nínfico) e percebemos que a genialidade é, simplesmente, pouco atraente. Claro que não temos de nos preocupar. Não regressaremos aos seixos e à recolecção no espaço de uma geração e pode ser que, com o tempo, a espécie se aperceba que a zoofilia é algo a que só se deve recorrer pontualmente, para ver curiosidades satisfeitas.

O mal da raça

Tiago Moreira Ramalho, 30.07.10

Ultrapassámos, sem qualquer dúvida, o pico do nosso desenvolvimento. Que cesse Marx e o historicismo parolo. A prova evidente de que a humanidade está a querer recuar naquilo que a diferencia da restante bestialidade jaz, como todas as provas de tudo, nos padrões sexuais. Dirijamo-nos a um bar, uma discoteca ou uma repartição de finanças e vejamos quem são os machos que as fêmeas escolhem para copular. Indivíduos cuja massa muscular do mindinho consegue, sem grande dificuldade, ultrapassar, em dimensão e em competência reflexiva, a massa encefálica. Se durante muito tempo a dança de acasalamento humana se alicerçou no poder, hoje, a dança alicerça-se na proximidade ao irmão inferior – sim, Singer, vem cá bater a este especista. E se o fenómeno é tão evidente nos dias que são os nossos, é certo que a tendência é identificável há muito.

Livre-arbítrio

Rui Passos Rocha, 30.07.10

O mito judaico-cristão de Adão e Eva pode ser interpretado, seguindo a Bíblia, como ilustração do que acontece aos homens que não obedeçam fiel e completamente a Deus - pecam e, por isso, terão uma eternidade pouco aprazível; ou pode ser visto como significando a atractividade da desobediência e da liberdade. Todas as religiões têm um cardápio de sanções para os impuros, mas é significativo um livro sagrado que não marginaliza a desobediência a ponto de a tornar assustadoramente implícita; a Bíblia inscreve-a precisamente na raiz da humanidade, como pecado original. Dizem que assim a dissuasão é maior, lendo sobre as consequências da desobediência; mas não será ilegítimo imaginar que o efeito também possa ser o oposto: o justo fazer-se pecador e justificar-se na culpa do casal primevo, que desgraçou irremediavelmente a espécie. E agora perdoem-me, que vou ali beber um suminho de maçã.

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