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A Douta Ignorância

Política, Economia, Literatura, Ciência, Actualidade

A Douta Ignorância

Política, Economia, Literatura, Ciência, Actualidade

Rage, rage

Rui Passos Rocha, 18.08.10

 

In Memoriam Dylan Thomas - de Stravinsky -, baseado em Do Not Go Gentle Into That Good Night, de Dylan Thomas:

 

Do not go gentle into that good night,
Old age should burn and rave at close of day;
Rage, rage against the dying of the light.


Though wise men at their end know dark is right,
Because their words had forked no lightning they
Do not go gentle into that good night.

 

Good men, the last wave by, crying how bright
Their frail deeds might have danced in a green bay,
Rage, rage against the dying of the light.

 

Wild men who caught and sang the sun in flight,
And learn, too late, they grieved it on its way,
Do not go gentle into that good night.

 

Grave men, near death, who see with blinding sight
Blind eyes could blaze like meteors and be gay,
Rage, rage against the dying of the light.

 

And you, my father, there on the sad height,
Curse, bless, me now with your fierce tears, I pray.
Do not go gentle into that good night.
Rage, rage against the dying of the light.

A origem

Bruno Vieira Amaral, 18.08.10

Vi Memento uma única vez. Lembro-me que o filme foi apodado de original, inovador e ousado, adjectivos que me pareceram adequados porque, certamente por desatenção minha, não percebi nada. Também não percebi nada de O Último Ano em Marienbad e nem sequer me atrevo a dizer que é menos que genial. Gosto muito do Resnais de On Connait la Chanson, que é um filme para mentes mais convencionais e burguesas, mas Marienbad ultrapassa-me de tal forma que quando me pedem opinião sobre o filme repito uma frase que inclui “sensorial”, “onírico”, “cinemática” e “Robbe-Grillet”, mas já estou a preparar uma versão em que acrescento “nouveau roman” e “plasticidade”. Quanto a Christopher Nolan, pude comprová-lo ontem ao ver A Origem, tem ideias engenhosas mas sem qualquer substância. A Origem é um heist movie psicanalítico: sonhos dentro de sonhos, cofres como metáfora para os segredos guardados no subconsciente, di Caprio a repetir o papel de Shutter Island (se no início da carreira di Caprio era conhecido por encarnar personagens que acabavam sempre por morrer, agora é garantido que há-de ficar viúvo e atormentado pela culpa). A ideia de Nolan é tão original, inovadora e ousada que as personagens são obrigadas a explicá-la com tantos pormenores que o espectador médio é obrigado a perceber que a ideia é aborrecida, banal e vazia. É como se, atravessados todos os níveis do sonho (excitantes como uma montanha-russa com efeitos pirotécnicos), o espectador chegasse ao cofre e não encontrasse nada lá dentro. A ideia de Nolan seria excelente se ele não tivesse de a explicar. Quanto aos sonhos, continuo a preferir aqueles que começam ao som de uma harpa a estes que não se distinguem de um videojogo.

Agradecimento

A Douta Ignorância, 16.08.10

Os autores deste blog agradecem à escritora Rita Ferro o destaque no Sapo. É para estas coisas que trabalhamos todos os dias, com muito sacrifício e muita humildade. Se vamos jogar de início? O mister é que decide.

Descubra as diferenças

Rui Passos Rocha, 12.08.10

«Os alemães capturaram cerca de 5,5 milhões de soldados soviéticos durante a guerra, três quartos dos quais nos primeiros sete meses a seguir ao ataque à URSS, em Junho de 1941. Destes, 3,3 milhões morreram de fome, frio e maus tratos nos campos alemães. Morreram mais russos nos campos de prisioneiros de guerra alemães nos anos de 1941-1945 do que em toda a Primeira Guerra Mundial. Dos 750 000 soldados soviéticos capturados quando os alemães tomaram Kiev, em Setembro de 1941, apenas 22 000 sobreviveram para ver a Alemanha derrotada. Por sua vez, os soviéticos fizeram 3,5 milhões de prisioneiros de guerra (na sua maioria alemães, austríacos, romenos e húngaros). A maioria deles regressou a casa depois da guerra.»

 

Tony Judt, no Pós-Guerra.

A idade dos extremos (3)

Rui Passos Rocha, 12.08.10

Talvez os extremos se toquem. Afinal, o partido nazi era Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães. Dos trabalhadores, não da burguesia (Hayek diz que foi precisamente a ausência de uma burguesia, minada pelo socialismo, que propulsionou o nazismo). Aliás, Fichte e outros ideólogos importantes para o fascismo eram socialistas, assim como o foram, inicialmente, as saudações militarizadas e os movimentos infantis, mocidades se preferirem. Mussolini, Laval e Quisling também começaram do lado esquerdo. Talvez os extremos se toquem. E não é o massacre desumano planeado pelo grupo de bêbedos e sociopatas nazis que, por si só, eleva aos mesmos píncaros todo o fascismo.

A idade dos extremos (2)

Rui Passos Rocha, 12.08.10

Digamos, agora, que “pensar em termos de um sistema […] resolve de uma penada todos os problemas da humanidade” (Kolakowski) e que, se condimentado isso com a concepção do Estado como um instrumento de opressão de classe, até premir o gatilho a alguns parecerá justificável se à esquina entrevirem a redenção. Uma democracia - sem sarcasmo, porque assim é apelidada - “em que o estado é o único empregador, oposição significa morrer lentamente de fome” (Trotsky). Num tal tipo de democracia, em que por vezes é preciso “dar uma lição ao público para que não se atreva a pensar em resistência durante várias décadas” (Lenine), até a permanência de crianças no GULAG será concebível tendo em conta que o caminho para o socialismo ainda está a ser trilhado (mulher de Lenine). Nesta democracia, plebiscitária com vencedor predefinido, dificilmente não será “cada homem um mero agente, um mero número” (Tocqueville). E nesta forma de democracia, acreditar “em duas coisas que são absolutamente diferentes e talvez até contraditórias: liberdade e organização” (Halévy) poderá ser concebível, se se procurar liberdade na organização, o dilema de Rousseau. A crença é capaz de muito, até de imaginar um regime em que “os trabalhadores serão tão produtivos que trabalharão voluntariamente de acordo com as suas capacidades […] e cada um receberá [o seu salário] livremente de acordo com as suas necessidades” (Lenine). Até Hobsbawm, o grande historiador contemporâneo e comunista ortodoxo, cede no ponto em que “a possibilidade de ditadura está implícita em qualquer regime baseado num poder único, irremovível”. E as ditaduras, como vamos sabendo, não só “corrompem absolutamente” (Acton) como são tudo o que uma Humanidade pacífica deve evitar. Se uma (comunismo) é melhor do que outra (fascismo), podendo ser verdade é acima de tudo lateral.

A idade dos extremos

Rui Passos Rocha, 12.08.10

Mas pare-se lá o baile, que ainda não me escudo de eventualmente ser mentecapto: não extraio dali tudo o que há a extrair para afirmar se sim ou não “uma ditadura não é melhor do que outra”. As entranhas revolvem-se-me um pouco com frases incluíndo “ditadura” e “melhor”, mas avance-se; e passe-se ao lado da especulação sobre quão “melhor” ela será para que a frase mereça sequer ser escrita – presumivelmente foi-o porque bem “melhor” se a conceberá. Avance-se, então, deixando também de parte que, do lado daquele tipo de argumentação normalmente está um sovietismo anti-estalinista que, porém, agrupa nazismo e fascismo, transformando a comparação numa luta corpo-a-corpo entre Krushchev e Hitler, David e Golias. Porque não comparar Estaline a Hitler e Krushchev a Mussolini? Em qualquer dos casos o primeiro contou mais cabeças. E porquê ficarmo-nos por estes países? Estima-se em 150 milhões os mortos pelo comunismo no século passado. E porquê, se nos dizem que o problema do comunismo esteve, não estará, na prática, não lembrar o ideólogo Lenine, hoje sentado à direita de Marx num qualquer paraíso igualitário, quando também ele na prática foi de uma humanidade venerável? Ordenou ele: “1. Enforcai (e assegurai-vos de que o enforcamento tem lugar à plena vista do povo) um mínimo de cem notórios kulaks, homens ricos e sanguessugas. 2. Publicai os seus nomes. 3. Confiscai todos os seus cereais. 4. Nomeai reféns em concordância com o telegrama de ontem. Façam-no de uma forma que, por centenas de quilómetros em redor, as pessoas possam ver, tremer, saber, gritar: eles estão a estrangular e estrangularão até à morte as sanguessugas kulaks”. E porque não, por fim, lembrar que antes da II Guerra os Gestapo eram apenas 8 mil se comparados com os 350 mil da GPU? Na idade dos extremos, um foi horripilante, mas o outro abriu mais valas.

O Acólito

Bruno Vieira Amaral, 12.08.10

A minha carreira como jogador de futebol durou dez treinos a lateral direito e um auto-golo. Ainda participei em dois ou três torneios de futebol de cinco, como avançado e como guarda-redes, mas sempre com o mesmo insucesso, à excepção de um improvável golo que só não considero genial por ter sido tão fortuito como um milagre; recebi a bola de costas para a baliza, marcado por um adversário, meti-lhe uma cueca e, à saída do guarda-redes, rematei cruzado e rasteiro. O pai de um miúdo da outra equipa deu-me os parabéns e, depois disso, refiz várias vezes aqueles movimentos na minha memória, mas com o passar dos anos fui perdendo precisão e calculo que, daqui a muitos anos, a única imagem guardada – porque a memória não quererá atazanar o corpo com lembranças daquilo que este já não poderá fazer - será a daquele homem de bigode a bater palmas e a incentivar-me. Este momento de glória obscura, porque ocorrido num ringue da gozável Baixa da Banheira, acompanha-me e quando hoje assisto a jogos dos infantis não deixo de sentir como aquilo que parece uma brincadeira para quem o vê de fora é tão importante, decisivo e grandioso para o miúdo que está dentro do campo. Quando entram em campo, as camisolas, os calções, as chuteiras, o símbolo do clube ao peito – a noção de representar um clube perde a conotação mercenária do futebol dos grandes e readquire o sentido primitivo de intérprete individual do colectivo, a magia simples de se ser parte de um todo – sérios como numa primeira comunhão, aquele jogo é para eles todo o mundo. Tudo o que existe é ali que existe, tudo o que lhes pode acontecer é ali que pode acontecer. Entre os miúdos há aqueles que aos oito anos já têm toda a parafernália das vedetas (fitas, cabelos, ademanes, impropérios) e há os outros que mais parecem homúnculos de futuros professores de geografia. Há tempos, observei um destes últimos. Pele protector 50, cabelo engomado, gordinho, perfeito para acolitar padres em paróquias do interior. Assim que o jogo começou, o meu preconceito foi triturado pela realidade. Não só era o mais inteligente (sempre no sítio certo), o mais tecnicista (nada de malabarismos, falo de pôr a bola redonda no pé do colega a vinte metros) e de uma rapidez que o seu aspecto rechonchudo não fazia adivinhar. Era o melhor jogador da equipa e nem sequer usava fitas no cabelo. Demonstrava uma tal segurança em tudo o que fazia que fiquei convencido que, qualquer que seja a profissão que venha a escolher, terá sucesso. Se vier a ser jogador de futebol, terá muito mais para recordar do que um golo solitário num festival de fracassos.