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A Douta Ignorância

Política, Economia, Literatura, Ciência, Actualidade

A Douta Ignorância

Política, Economia, Literatura, Ciência, Actualidade

Apoiem o hipercluster

Rui Passos Rocha, 09.10.10

Ainda sou do tempo em que cluster significava um aglomerado industrial do tipo Silicon Valley. Mas se há mérito do Governo-Sócrates é ter popularizado o termo a ponto de lhe subverter a própria lógica: agora até Ernâni Lopes chama ao mar um hipercluster, logo reverberado por Pedro Adão e Silva, o nosso mais famoso (talvez por ser o único) economista do surf. Escreve o sociólogo - no Expresso de hoje - que Portugal deveria aproveitar turisticamente a sua costa, sobretudo explorando o negócio do surf entre Peniche e a Ericeira. Concordo. Depois do falhanço do seu «claramente sim» à pergunta «devemos alimentar os surfistas?», suponho que na sua mente a recarga passe por um apoiozinho estatal para o novo cluster nacional. De cluster em cluster, até à hegemonia económica. Um dia os investidores internacionais, esses cegos ultraliberais, perceberão que estavam errados.

Humor

Bruno Vieira Amaral, 09.10.10

Uma saraivada de pedras que atinge Dom Quixote; o comentário de Borges sobre a curiosa variação do filantropo Bartolomé de las Casas; o papagaio que, ao cair numa panela, desata em gritaria náutica, em O Amor nos Tempos de Cólera; a humilhação de João da Ega mascarado de Mefistóteles; a carta da mulher de Elói Calisto, o anjo caído de Camilo; a descrição de um cavalo por Quevedo. Mais do que qualquer outra qualidade, o humor aproxima-nos do escritor, estabelece uma ponte intemporal de compreensão e de inteligência. Guardo dois exemplos do humor de Vargas Llosa. Um poderá ser encontrado em A Tia Júlia e o Escrevedor e conta o desfecho acrobático de uma peça sobre Cristo. O outro está em Os Cadernos de Dom Rigoberto e transcrevo o longo trecho para bem do leitor desanimado pelos aguaceiros outonais deste Sábado:

 

“Porém Manuel não fora um poeta como Neruda, nem um moralista como Swift, nem um sexólogo como Ellis. Apenas um castrado. Ou, antes, um eunuco? Diferença abissal, entre esses dois negados para a fecundação. Um possuía ainda falo e erecção e o outro tinha perdido o adminículo e a função reprodutora e apresentava um púbis liso, curvo e feminil. O que era Manuel? Eunuco. Como tinha podido Lucrecia conceder-lhe aquilo? Generosidade, curiosidade, compaixão? Ou vício e doença? Ou todas essas coisas combinadas? Ela tinha-o conhecido antes do célebre acidente, quando Manuel ganhava campeonatos motociclísticos enfiado num capacete rutilante e num calção de plástico, encarrapitado sobre um equídeo mecânico de tubos, guiador e rodas, de nome sempre japonês (Honda, Kawasaki, Suzuki ou Yamaha), catapultando-se a si mesmo com barulho de peido ensurdecedor a corta-mato – chamavam-lhe motocross -, embora também costumasse participar em galimatias como Trail e Enduro, esta última prova de suspeitosas reminiscências albigenses – a duzentos ou trezentos quilómetros por hora. Sobrevoando valetas, trepando cerros, alvoroçando areais e saltando rochedos ou abismos, Manuel ganhava troféus e aparecia fotografado nos jornais desrolhando garrafas de champanhe e com modelos que lhe beijocavam as faces. Até que, numa dessas exibições de acrisolada estupidez, voou pelos ares, depois de subir como uma bólide uma colina enganada, atrás de cujo cume o esperava, não, como ele, incauto, julgava, um sedante tobogã de amortecedoras areias, mas sim um precipício com rochedos. Precipitou-se nele, gritando um palavrão arcaico – Olho do cu! – quando voava no seu corcel de metal rumo às profundezas, a cujo fundo chegou segundos depois sonoramente, num estrondo de ossos e ferros que se esmagavam, quebravam e estilhaçavam. Milagre! A sua cabeça ficara intacta; os seus dentes, completos; a sua visão e a sua audição, sem dano algum; o uso das suas extremidades, um tanto ou quanto ressentido graças aos ossos quebrados e aos músculos rasgados e tosados. O passivo ficou compensatoriamente concentrado nos seus órgãos genitais, que monopolizaram os estragos. Porcas, pregos e punções perfuraram-lhe os testículos apesar do elástico suspensor que os guarnecia e fizeram deles uma susbstância híbrida, entre a pasta de mel e a ratatouille, ao mesmo tempo que o pecíolo da sua virilidade foi cerceado de raiz por algum material cortante que talvez – ironias da vida – não proviesse da moto dos seus amores e triunfos. O que o castrara, então? O grosso crucifixo puncticortante que levava posto para convocar a protecção divina quando perpetrava as suas proezas motociclísticas.”

 

Os Cadernos de Dom Rigoberto, tradução de J. Teixeira de Aguilar

A Ana come

Rui Passos Rocha, 07.10.10

Seriamente - como, aliás, sempre no que escrevo -, um gajo passa os olhos pel'A Corrupção e os Portugueses (Luís de Sousa e João Triães) e vê-se na cabeça de Saint-Simon: afinal é possível uma sociedade em que todos são visceralmente contra a corrupção. As excepções são poucas. O despassarado que não tenha reparado no título do livro pensará que está a ler A Corrupção e os Neozelandeses. Pelo menos temporariamente; à medida que vai folheando vai percebendo outro panorama: uns 30% já dizem que seriam meninos para votar num político que, apesar de condenado por corrupção (vá, acontece a qualquer um, não sejamos mauzinhos), condenado, dizia eu, condenado portanto, tenha «feito». Justamente, Berlusconi define o seu Governo como «il governo del fare». Atitudes políticas, certo; mas as atitudes sociais não serão muito distintas. Daí, imagino, que os dirigentes da ANACOM se permitam reagir a isto «dizendo apenas que actua na legalidade e que faz compras transparentes de acordo com o código das compras públicas». Vê-se que regulam.

História de um fratricídio

Bruno Vieira Amaral, 07.10.10

Daqui

 

As pessoas já não se esmurram. Perderam o hábito genuíno de responder com violência às ofensas e aos apoucamentos de carácter. Guardam a vergonha no bolso interior do casaco, com mil cuidados para que não se amarrote, mantêm a ferida viva e quando chegam a casa escrevem um post sobre humilhação, com o título “Humilhação – algumas considerações”. A última vez que me lembro de ver uma discussão resolvida a murro fui eu o receptor do argumento final e o efeito foi tremendo; a discussão terminou ali e eu, embora sem o auxílio do meu maxilar, não tive pejo em reconhecer a superioridade retórica do meu oponente. Toda a gente recorda, mesmo os que lá não estiveram, a famosa “Disputa de Valladolid”, em 1550-1551. O combate opôs Bartolomé de las Casas a Ginés de Sepúlveda, e se os nomes lembram pesos-mosca cubanos e heróis de romances de cavalaria, a verdade é que estes dois espanhóis, pois era esta a nacionalidade dos infames, passaram meses a discutir se os índios tinham alma sem que nenhum dos dois tivesse tido a coragem de partir a boca do outro. No final, como seria de esperar, ambos reclamaram vitória. Alguns séculos depois, García Márquez e Vargas Llosa, duas consequências literárias daquela antiga discussão, consumaram, enfim, a violência anunciada; este encontro de uma face caribenha com um punho andino ficou conhecido como o mais célebre murro da literatura latino-americana. Depois do boom, o bonc! (é uma onomatopeia esquisita para soco, eu sei). O episódio ocorreu em 1976, na Cidade do México, na antestreia de um filme cujo guião tinha sido escrito por Vargas Llosa. Ao ver o companheiro, García Márquez exclamou um eufórico “Irmão!”. Vargas Llosa, menos eufórico mas mais certeiro, respondeu-lhe com um murro que deixou o futuro Nobel quase inconsciente. No cerne do desaguisado não terá estado a existência da alma dos índios mas, segundo consta, o corpo da mulher de Vargas Llosa, cuja existência aparentemente só oferecia dúvidas a García Márquez. Não há certezas. Como numa boa cena de um mau western, o peruano terá acompanhado o murro de uma justificação pouco clara: “Isto é pelo que disseste à Patricia” ou “Isto é pelo que fizeste à Patricia”. Dito ou feito, na forma tentada ou verbalizada, o atrevimento valeu a García Márquez um inquestionável murro, com direito a um lugar eterno nas discussões entre intelectuais hispânicos. E Vargas Llosa provou que também com os punhos se fala bom castelhano.

Conversa n'A Catedral

Bruno Vieira Amaral, 07.10.10

Crítica publicada no i:

 

Quarenta anos depois da publicação de Conversa n’A Catedral, o magistral romance de Mario Vargas Llosa, a pergunta que surge logo na primeira página ainda ecoa como senha do desencanto: “Em que altura se tinha fodido o Peru?” É o Abre-te, Sésamo que dá acesso à autópsia de uma sociedade sob o jugo da ditadura. Uma nação falhada é um cadáver gigantesco composto por milhares de fracassos individuais, de ricos e de pobres, de intelectuais e de camponeses, de brancos, de negros e de mestiços. E há sempre os vermes para os quais o corpo putrefacto é um festim.

 

Apesar de retratar uma ditadura, Conversa n’A Catedral não se insere no género latino-americano de romance de ditadores. Aqui, o ditador (o General Odría que governou o Peru entre 1948 e 1956) é uma sombra tutelar, uma ausência omnipresente. Odría é a emanação provisória do regime e dos interesses que o sustentam: “Bom, enquanto conseguirem mantê-los satisfeitos, eles apoiarão o regime. Depois arranjam outro general e põem-nos fora. Não tem sido sempre assim no Peru?” Vargas Llosa desvia-se do tema do exercício solitário do poder absoluto e centra-se na descrição da ditadura enquanto sistema. O fundamental é a descrição dos mecanismos de controlo e repressão, dos bastidores onde se unem as pontas soltas dos interesses, das encenações em que o poder se celebra. Um ambiente propício ao cínico, pragmático e maquiavélico Cayo Bermúdez, cérebro e Cerbero do regime, eminência parda que rapidamente se transforma na peça essencial do jogo do poder. Enquanto Bermúdez, homem endurecido pela miséria e pelo orgulho, nunca teve ilusões, Santiago Zavala, outro dos personagens centrais do romance, perdeu-as antes de chegar aos 30 anos. Menino bem, filho de um dos apoiantes e cúmplices do regime, Zavalita renuncia aos privilégios de classe e à protecção da família para também ele falhar, apenas com o parco consolo de o fazer pelos próprios meios. É Zavalita que, anos mais tarde, conversa n’A Catedral, uma tasca de Lima, com o negro Ambrosio, ex-motorista do pai e de Cayo Bermúdez. Juntos, tentam perceber o que os levou até ali. Essa longa conversa, que atravessa todo o romance, é a trave mestra da assombrosa obra de engenharia narrativa que é Conversa n’A Catedral. Ao leitor é exigida uma participação atenta na construção do enredo e da complexa teia com dezenas de personagens, constantes saltos temporais e diálogos que se cruzam numa dinâmica caleidoscópica.

 

A cidade de Lima, mortiça e suja, surge como sinédoque da sociedade peruana: dos bairros finos aos bairros de lata, dos palácios do poder às tascas esconsas, dos clubes reservados às casas de má fama, tudo sob a mesma cacimba mole que leva Zavalita a concluir que, como tudo o resto, “até a chuva estava fodida neste país; se ao menos chovesse a cântaros”. E a pergunta inicial fica sem resposta. O que separa a descoberta do amor da desilusão conjugal, os ideais revolucionários da resignação política, o curso de Direito de um trabalho medíocre, as virtudes públicas dos vícios privados, um país próspero de uma nação miserável, não é um único momento isolado. É a vida. Triste. Cinzenta. Fodida.

Momento estatístico-astrológico

Bruno Vieira Amaral, 07.10.10

O Nobel da literatura é anunciado hoje e eu diria que está tudo pronto para ser entregue a um homem, poeta, septuagenário, não europeu e com um sinal de nascença atrás da orelha esquerda. É só escolher. Fora destes critérios, as minhas preferências pessoais (por acaso, todos homens, romancistas, não europeus e agora não posso ir ao google confirmar se septuagenários): Chinua Achebe, Cormac McCarthy e Mario Vargas Llosa, sendo que a atribuição do Nobel a este último é alta e politicamente improvável, para não dizer impossível.