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A Douta Ignorância

Política, Economia, Literatura, Ciência, Actualidade

A Douta Ignorância

Política, Economia, Literatura, Ciência, Actualidade

Albert Camus

Bruno Vieira Amaral, 05.10.10

Camus sofreu, e continua a sofrer, o facto de ter sido muito lido e muito amado. Outros, como Joyce, Proust, Woolf, Faulkner e, em menor grau, porque mais lidos, Kafka e Borges, beneficiaram do facto de serem menos lidos mas continuamente admirados à distância que separa o crente do altar, que separa o leitor do mistério que não lhe é acessível: quantos dos que não hesitam em falar da genialidade de Joyce, Proust e Woolf leram Ulisses, Em Busca do Tempo Perdido ou As Ondas? A legibilidade de Camus foi o seu grande pecado. Era demasiado acessível para que não fosse treslido, apoucado, menosprezado. Mas os seus livros estão aí, resistem a esse ataque que desdenha da beleza e da moral (e também da beleza moral) simples das suas palavras e das suas ideias. Literariamente, se isolarmos a estética, se isolarmos a literatura da atmosfera moral que respira, temos de reconhecer que outros escritores quebraram regras, foram muito mais longe do que Camus. Mas nenhum outro se aproximou mais do coração do homem, do seu centro moral. Cabe-nos a nós, seus leitores e admiradores, adolescentes de alma, perpetuar a sua voz, demonstrar que continua a fazer sentido, que continuamos a reconhecê-la como nossa, que permanece válida e importante não só na nossa relação com os livros mas na nossa relação com o mundo, na nossa relação com os outros, porque, a partir do momento em que a ouvimos pela primeira vez, inscreve-se no mundo, no mundo onde todos nós somos estrangeiros.

 

Texto completo aqui

Socorro, estou apaixonado

Tiago Moreira Ramalho, 05.10.10

O meu amor desmesurado à República é facilmente verificável. Só um apaixonado cego, que aprecia cada ruga e cada gesto da sua senhora de peito ao léu, senhora já idosa, apesar de representada sempre nos seus anos áureos; só um apaixonado, dizia eu, pode aguentar a relação tendo um candidato que é justo e é solidário nos cartazes, outro que não é nada além de qualquer coisa civil e monárquica, outro que não é nada ponto e outro que, não fosse a falta de melhor opção, bem que podia ir enrodilhar-se na mantinha, que de falsos moralistas je moi-même está farto. Por isso que fique descansada, minha senhora, que a relação estender-se-á por muitos e bons anos, apesar das modinhas monárquicas que grassam pelas margens do Tejo.

O Rei sou Eu

Tiago Moreira Ramalho, 05.10.10

Publiquei este texto há coisa de um ano no Expresso Online. Como me parece que não há muito a acrescentar, republico-o.

 

Nós os republicanos temos tratado os monárquicos com uma parcimónia que me parece exagerada. Bem sei que nós, simpáticos, não queremos agitar as crenças de ninguém, mas basta o que basta. Ainda por cima quando é mais que público que alguns, e aqui coloco a tónica na palavra alguns, monárquicos dizem dos republicanos e da sua dama de peito ao léu aquilo que o Cardeal Ratzinger não diria do Belzebu.

O Rei sou Eu, caro leitor. E não tenha inveja, que o leitor também é. É essa a maravilha de tornar os Estados numa coisa pública, tirando-os da mão de um senhor - normalmente é um senhor, não há quotas na genética - que o herdou apenas porque os concidadãos dos seus antepassados não se importaram de abdicar do direito a escolher o seu líder máximo, delegando tal competência à madrasta natureza. E que madrasta, tantas vezes.

Dizem que o monárquico é regime de muita virtude. Que os países mais ricos da Europa são Monarquias. Pois são. Mas falta dizer que se tornaram os mais ricos e poderosos muito antes de se pensar na ideia de uma República. Ou no século XIX a Inglaterra e a Holanda não eram muito mais ricas que esta nossa praia mal amparada? Pois é. Estas faláciazinhas só enganam quem se quer deixar enganar.

E dizem que o monárquico é regime de muita liberdade, de muita escolha. Mentira. Descarada! Pelo amor do Altíssimo, diga-me o leitor, caso queira, claro, como é que se pode falar em Democracia quando o mais alto cargo do Estado é imposto por uma espécie de desígnio divino? É simplesmente uma hipocrisia dizer que uma Monarquia pode ser uma Democracia, porque todos sabemos que isso é um simples contra-senso. Uma Monarquia Constitucional é apenas uma Monarquia como qualquer outra, na qual o Rei concede - é este o termo - ao povo, à plebe, o direito a escolher quem faz o trabalho sujo - o governo. Mais nada. Não é uma democracia. É uma tirania feita para não desagradar muito. E mesmo que desagrade, não tem mal, que do trono ninguém sai com a cabeça em cima dos ombros.

Alguns, espertos, respondem-me a isto com um sublime: "Ah! Sim! Portugal é muito democrático quando comparado com Inglaterra!". Irónicos, os tipos. Esta é uma falácia muito costumeira nestas discussões. O raciocínio subjacente é: o Portugal actual, apesar de republicano, não é tão democrático como a Inglaterra, que é uma Monarquia; logo, a Monarquia é mais democrática que a República. Tonteria. E, novamente, só cai nesta quem quiser cair. É que a questão é simples: Inglaterra até pode ter as maiores liberdades deste mundo asseguradas; o povo inglês até pode ter os mais democráticos sistemas eleitoral e participativo; isto pode ser tudo verdade, mas não deixa de lhes faltar uma última liberdade: a de escolherem o seu líder máximo, a de escolherem quem os representa lá fora, a de dizer, defender e propor um líder alternativo. É este o problema. E, meus caros, volto a dizer: só não percebe isto quem não quer.

Maiêutica (2)

Rui Passos Rocha, 03.10.10

Descontando-se aqui e ali - em coisas "menores" como a desonestidade, a arrogância, o tacticismo, o falso pragmatismo e o lunatismo -, Sócrates dá ao país o melhor de dois mundos: o programa económico de Ferreira Leite (sim, esse, o da verdade), para gáudio dos materialistas, mesclado com uma política social de esquerda para contentar pós-materialistas. Naturalmente, nenhum dos dois flancos será inteiramente contentado; mas só mesmo nos pólos haverá um radical descontentamento. Este centrismo gelatinoso só é possível porque o Bloco não é apenas o Política XXI e, assim preso às cordas pelas suas facções mais extremistas (sobretudo o Ruptura/FER), não capta - para já - o grosso dos socialistas descontentes. Mas o sucesso desta táctica depende daquela premissa, daquele desconto tanto menos provável quanto mais Passos Coelho se demarcar do estado de coisas. Assim teremos de volta o bipolarismo de 2009: o discurso da verdade catastrófica versus a propaganda do optimismo desmesurado. No final, porém, entre discurso e realidade teremos menos a perder do que... a JP Sá Couto.

Who's your superman?

Rui Passos Rocha, 02.10.10

O pessimismo antropológico de Pedro Mexia é, disse-o o próprio, pelo menos em parte embebido na filosofia política de Nietzsche; mas essa, por si mesma, depende da premissa do «assassínio de deus» pelo Homem e da sua posterior deriva niilista. Do ponto de vista de um cristão, como creio ser o caso do escritor, talvez a tese do Super-homem seja particularmente dolorosa se, autoposicionado do lado dos «fracos» ou sub-humanos, tender a aceitar a ideia tocquevilliana de que a Providência nos limitou a «um círculo fatal que nenhum poderá ultrapassar» - por mais que nos esforcemos nunca ultrapassaremos o limite inato das nossas potencialidades. Um tal pessimista, imagino, tenderá a remoer a sua suposta inferioridade a ponto ou de rejeitar por absoluto a doutrina cristã, ou de a pretender vigorosamente imposta sobre os restantes - os imorais «assassinos de deus». Entretanto, essa mesma percepção de inferioridade será, afinal, superioridade pelo menos no confronto com o abismo: aí não há Super-homem, assim necessariamente auto-percebido, que não se acagace.

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