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A Douta Ignorância

Política, Economia, Literatura, Ciência, Actualidade

A Douta Ignorância

Política, Economia, Literatura, Ciência, Actualidade

Londres IV (agora mesmo para acabar)

Priscila Rêgo, 31.08.11

Parece que os tumultos já acabaram. A Esquerda caviar que defendia que foi tudo causado por pobreza e alienação vai ter alguma dificuldade em explicar quais as políticas sociais milagrosas que o Estado britânico colocou no terreno em menos de uma semana para voltar a pôr os miúdos em casa. E a Direita do crucifixo vai ter de arranjar melhor argumento quando quiser falar de crise de valores e do niilismo da juventude.

 

Não espero que quem faz política (ou dinheiro) a vomitar preconceitos perca agora muito tempo a comparar as previsões que fez na altura com os factos que agora conhecemos. Uma parte do proveito de opiniões extremadas só é devidamente extraído quando estas são debitadas com convicção e violência. Parar para pensar, reflectir e mudar de opinião estragava a imagem de certeza absoluta que é preciso projectar. 

 

Mas espero que a opinião pública perceba, ainda que pouco a pouco, a quem não deve dar ouvidos. As certezas que cada um reivindica não são uma medida do grau de correcção da sua opinião. São um barómetro da sua casmurrice. Um dia compreenderemos isso.   

 

 

 

 

 

Gays, parvoíce e liberdade

Rui Passos Rocha, 29.08.11

Anda por aí gente incomodada com o boicote anunciado por uma catrefada de facebookeiros ao jornal Sol, na sequência de mais um daqueles textos do director José António Saraiva sobre a homossexualidade - que tanto o atormenta. (Outros ficaram indignados por a Tranquilidade ter cancelado uma exposição sobre a homossexualidade, mas tanto quanto sei não há ainda qualquer grupo do Facebook que apele ao boicote à seguradora.)

A reacção dos incomodados foi dizer que a máxima discordo do que dizes, mas lutarei até ao fim pelo teu direito de o dizeres (ou algo do género) está a ser desrespeitada por aqueles que apelam ao boicote. Ludwig Krippahl escreveu que tal apelo "é injusto para com as outras pessoas que lá escrevem e que não têm culpa do José António não ter coisa melhor para escrever. Além disso, o direito de se dizer o que se pensa serve precisamente para dizer o que incomoda os outros, porque para dizer o que não estorva ninguém não é preciso direito nenhum".

Não creio que isso esteja em causa. Tanto quanto sei ninguém apelou a que a ERC lançasse uma das suas epístolas ao Sol, nem se terá exigido o fim da comercialização do jornal. O que vejo é simplesmente uma iniciativa que pretende sinalizar que enquanto forem escritos editoriais contendo argumentos como os gays não deveriam casar porque não se lhes poderá chamar marido e mulher o jornal poderá sofrer nas vendas. E isso - a não ser que eu esteja a ver isto tudo mal - é um reflexo de liberdade.

Ainda Londres

Rui Passos Rocha, 23.08.11

Tony Blair escreveu um texto dizendo que o que aconteceu há dias em Londres e outras cidades britânicas não espelha um declínio moral da sociedade, como defende Cameron, mas sim a alienação, desafeição e maus comportamentos de jovens pertencentes a famílias disfuncionais. A solução, diz, não é aumentar as penas (direita) nem criar programas de reeducação social (esquerda), mas sim ir bairro a bairro, e casa a casa, perceber e resolver os problemas específicos.

A ideia não é propriamente nova; nem está assim tão distante daquela que ele atribui à esquerda. Suponho que o que ele dela critica é que pretenda socializar os jovens recorrendo a um mesmo plano para todos, como se os problemas fossem homogéneos. Mas não consta que esses programas de reeducação não sejam, na prática, maleáveis.

Por outro lado, a ideia pode perfeitamente funcionar. Significa que a sociedade reconhece a sua imperfeição e desigualdade, dando por isso outra oportunidade de inclusão aos mais desfavorecidos. Mas pode haver uma ponta solta: se esse incentivo à inclusão não for acompanhado por um desincentivo ao crime (aumentando as penas) talvez o efeito pretendido não seja conseguido.

Um Estado dentro do Estado

Priscila Rêgo, 15.08.11

No meio disto tudo, o mais interessante não foi dito: as "forças de Segurança"  (Polícia, Defesa e por aí fora) estão a protestar contra duas medidas - o congelamento de progressões e de celebração de novos contratos - que já estavam previstas no Orçamento de 2011. A razão pela qual só o fazem neste momento não é clara, mas uma boa hipótese é a possibilidade de apenas agora terem a noção de que é mesmo uma coisa para levar a sério. Até aqui, era um regabofe.

 

O país improvável

Tiago Moreira Ramalho, 14.08.11

Orgulhamo-nos de forma por vezes exacerbada da simples existência do país em que vivemos. Alegra-nos isto de ter fronteiras naqueles sítios específicos onde as temos e tudo isso. No entanto, apesar de quase mil anos de História, não posso evitar dizer que este é, mais do que tudo, um país improvável. Para a generalidade das pessoas, isto não tem muita relevância, mas este país, em cerca de cento e cinquenta anos, cinquenta dos quais foram passados em ditadura, faliu uma vez e teve de ser auxiliado pelo estrangeiro três outras vezes. Isto vai muito além da história de não nos sabermos governar. Não sabemos viver. Há um qualquer complexo hedonista nesta praia que nos força a viver sem pensar em sustentar essa vida. Hoje, mais uma vez, estamos à beira da falência e a gente que aqui anda, vive e vota consegue, com dedos sérios, escrever que os impostos não devem aumentar, que a despesa não deve reduzir, que assim não vamos crescer. Foi precisamente por ninguém se ter preocupado com o crescimento no passado que chegámos a isto. E se não foi na bonança que crescemos, não vai ser agora. Portanto a solução, agrade ou não, é simplesmente pagar. Ou isso, ou provar a impossibilidade da pátria que tanto orgulho gera.

Londres III

Priscila Rêgo, 12.08.11

Os posts anteriores não são incompatíveis com um repressão policial. Aliás, a ideia dos incentivos até pode justificar uma polícia musculada, porque um dos incentivos mais fortes do ser humano é o desejo de evitar a dor, algo que pode ser alcançado com grande propriedade por umas judiciosas bastonadas. Além do mais, a desigualdade não se reduz num dia. E, entretanto, há que fazer alguma coisa.

 

Mas tudo isto se baseia na ideia de que há um problema e, portanto, uma solução: reduzir a desigualdade, pôr a polícia a malhar na malta, etc. Há outra possibilidade, que ninguém considera publicamente porque o espaço público é um espaço de certezas e afirmações contundentes, mas que pode ser uma explicação plausível: e se não há uma causa para isto, no sentido significativo do termo?

 

Deixem-me explicar com um exemplo que pode ferir alguns espíritos masculinos. Uma das coisas mais engraçadas no final dos jogos de futebol é ouvir os doutores da bola a explicarem a vitória de uma equipa com as "linhas diagonais", as "dinâmicas de posse de bola", a "pendularidade do trinco" e por aí fora. Fico banzada: às vezes, o que vejo é uma equipa que teve a sorte de marcar no primeiro minuto e de apanhar com cinco bolas no ferro durante a segunda parte. E que raio tem isto a ver com a pendularidade ou obliquidade de um gajo no meio do relvado?

 

Muitos fenómenos não têm causa neste sentido. A equipa que tem a sorte de marcar no momento certo, o actor que estava no casting certo, a empresa que descobriu petróleo por acaso. Acontece quando há fenómenos de feedback positivo - levando a reacções em cadeia, em vez de reacções de homeostasia - e sobretudo em sistemas instáveis. Uma quebra a pique na bolsa não precisa de ser justificada por fundamentais macroeconómicos. Pode ser o azar de estarem todos a olhar para a mesma acção no momento em que esta cai para lá de um determinado limite. É azar que se auto alimenta até ao ponto de crise.

 

No caso dos tumultos de Londres, é fácil imaginar um "modelo" simples em que um conjunto de circunstâncias extraordinárias "descambou" facilmente naquilo que vemos na televisão. Sabemos que há sempre uma quantidade razoável de marginais e meliantes dispostos a roubar e a assaltar, mesmo com níveis de desigualdade ou pobreza dentro da média. Sabemos igualmente que os fenómenos de imitação social são muito fortes e que a "circunstância faz o ladrão": perante uma montra partida, é difícil resistir a entrar e tirar alguma coisa (a tal estória dos incentivos).

 

Agora, imagine-se que uma morte mal explicada despoleta uma pequena escaramuça com a polícia. A polícia avalia mal a situação e não dá explicações, gerando ainda mais protestos e fazendo crescer o sentimento de desconfiança: nada de novo. Até que tudo estala: confrontos, cokctails molotov, e por aí fora. A partir do momento em que o conflito estala, é difícil pará-lo: já se gerou "massa crítica" suficiente nas ruas, as expectativas ancoraram-se em torno da inacção da polícia e na multiplicação de confrontos (o que diminui a probabilidade de se acabar na cadeia) e as lojas partidas geram, mesmo no cidadão médio, com posses e sem problemas, o desejo irresistível de entrar na loja só para surripiar aquele DVD. Ninguém vai ver.

 

Se esta narrativa estiver correcta, a solução é apenas colocar a polícia na rua em força durante uns dias, até que as expectativas voltem a estabilizar em torno de um cenário estável. E a coisa vai aos eixos. Os próximos dias talvez façam luz a respeito deste tema.

 

 

Londres II

Priscila Rêgo, 12.08.11

O Henrique Raposo também comete aqui uma falácia muito comum. Dou-lhe a palavra.

 

Quando diz que a culpa disto é do governo, porque fechou centros de dia para os jovens (seja lá o que isso for), o ex-mayor de Londres está a dizer - implicitamente - que estes jovens têm de ser entretidos pelo estado. Porque, ora essa, se não forem entretidos, os ditos jovens vão virar vândalos. E é isto que enjoa. É esta ligação falaciosa entre o bolso e a moral que me tira do sério. Aliás, esta associação imediata entre o "Pobre" e a "violência" começa a ser repugnante. Porque é ofensiva para quem nasceu pobre. Que eu saiba, pobre não é sinónimo de vândalo ou de rufia.

 

Bom, é um pouco mais complexo do que isto.

 

Nem todos os pobres roubam. A maioria é boa gente. Eu própria considerava-me boa gente quando, não há muito tempo atrás, vivia com o extraordinário salário de 600€/mês. Mas isto é tão válido para o acto de roubar como para o acto de ler livros e ir à ópera. Alguns pobres fazem um esforço genuínio para lerem uns livros, acederem à alta cultura e aprenderem umas coisas. Em média, contudo, continua a ser muito mais provável que ver um rico do que um pobre na Quinta Sinfonia do Beethoven ou na secção de Ciência Política da FNAC. Ser pobre não é uma prisão. Mas pode ser um fardo pesado.

 

E este é um ponto em que a investigação no campo da ciência política e economia até tem produzido resultados mais sólidos e duradouros. A relação entre violência, assaltos e pobreza/desigualdade é altíssima, em praticamente todos os casos analisados. Se queremos saber a taxa de homicídios por mil habitantes numa dada região ou país, o melhor indicador para o prever é a desigualdade, e não a quantidade de meios colocados à disposição da polícia. Não é moral bacoca. São números. 

 

Isto não significa que a pobreza causa o crime. O pobre que rouba não é um autómato que não pensa. Mas é precisamente por não ser que este comportamento é compreensível. O homem é um ser racional que reage a incentivos, e uma das motivações mais fortes é comparar-se com os outros homens (algo que se traduz em resultados interessantes). Quanto maior a desigualdade, maiores os incentivos para a) contornar a desigualdade através de mecanismos ilícitos; b) melhorar a auto imagem através de uma sensação de superioridade não económica, como a violência e o abuso. A pobreza não causa o crime, mas gera um sistema de incentivos em que o recurso ao crime se torna relativamente mais apetecível.

 

À Direita que tem dificuldade em entender o conceito de incentivos, sugiro que troque desigualdade por "ausência de polícia nas ruas". A ausência de polícia nas ruas não torna ninguém crimininoso. Mas torna o crime uma actividade bastante mais proveitosa do que se as forças da segurança estiverem presentes. Talvez assim fique mais fácil de entender a ideia.

 

 

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