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A Douta Ignorância

Política, Economia, Literatura, Ciência, Actualidade

A Douta Ignorância

Política, Economia, Literatura, Ciência, Actualidade

Salvar vidas

Tiago Moreira Ramalho, 31.10.11

Perdi um livro, julgo, do António Barreto. Era uma colecção de crónicas que escreveu há muitos anos, mal tinha eu começado a caminhar na Terra, que comprei na liquidação da Buchholz. Um dos artigos propunha, já naqueles tempos idos, a legalização de todo o tipo de drogas em Portugal. E propunha-o pelo simples motivo de que, ao fazê-lo, o Estado garantia à população uma série de benefícios: maior controlo e qualidade dos produtos, menos criminalidade organizada, mais transparência no consumo, maior facilidade na obtenção de ajuda, maior informação, mais saúde. Tudo consequências tão óbvias quanto ignoradas.

Lembrei-me dele a propósito de uma notícia sobre uma clínica canadiana, a Insite, que permite há quase dez anos que pessoas normais possam, em ambiente seguro e controlado, consumir qualquer tipo de droga. O resultado não foi um apocalipse moral, mas sim uma série de melhorias na vida da comunidade. A criminalidade, a transmissão de doenças e as mortes por overdose diminuiram e, se calhar o fenómeno mais relevante, mais pessoas entraram em tratamento.

Não deixa, por isso, de ser natural que na altura de justificar o não encerramento do espaço o Supremo Tribunal Canadiano tenha defendido que a clínica «has been proven to save lives with no discernible negative impact on the public safety and health objectives of Canada». Ou isso, ou os americanos bonzinhos tornaram-se bárbaros mauzões.

A ignorância de Assunção Cristas

Vasco M. Barreto, 30.10.11

Assunção Cristas estreou-se como ministra num estado de graça que combinava um consenso sobre a sua competência política, a simpatia paternalista que se tem por a uma jovem mulher na elite política e a ideia de que um ministro não precisa de ter competências específicas e experiência, bastando-lhe a capacidade para estudar os dossiers, escolher a equipa e decidir. Não se lhe conhecia especial apetência para os assuntos do mar, o ambiente e a agricultura, mas como também não iria haver dinheiro, talvez não fosse mesmo grave, por muito peregrina que seja a tal tese da virtude da inexperiência. Só que neste tempo de antena mascarado de entrevista, em que a ex-deputada do CDS Manuela Moura Guedes surge dócil e um antigo assessor de imprensa de Paulo Portas decora a sala, Assunção Cristas abusa da nossa paciência. A começar, admite que deu informações erradas no Parlamento sobre a construção da barragem da Foz do Tua e que erro chegou "via secretário de Estado" - enfim, como são 4 secretários de estado no ministério, ao menos não o denunciou em público. A terminar a entrevista, mostra-se espantada quando lhe dizem que o escritório de advogados Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva e Associados, onde trabalhou antes de ir para o Governo, tem como cliente a concessionária da barragem do Tua, a EDP. E entre estes dois momentos de inequívoca incompetência, sem ter quem que lhe passe outro post it com "plantem sobreiros pelos meus netos", não se descobre em Cristas qualquer empatia pela causa do ambiente. Tudo é consolidação orçamental e necessidade de honrar os contratos, admitindo a ministra falta de independência sem um pingo de frustração, parecendo mais uma burocrata diligente do que um ministro com convicções. Não que Cristas precise de uivar como o Idéafix sempre que se abate um sobreiro, mas como estão em causa 1.104 sobreiros e 4.134 azinheiras de uma das paisagens mais belas do país, apetece parafrasear Moretti: Cristas, diz alguma coisa à ecologista. Diz alguma coisa, mesmo que não seja de ecologista, alguma coisa civilizada. Cristas, diz qualquer coisa. Reage! 

Ou então aumentem-me o salário líquido

Rui Passos Rocha, 30.10.11

Não sou propriamente quem mais contribui para engrossar a conta bancária deste senhor, mas depois do que disse hoje o líder da Sagres ("não há espaço para as pessoas que não queiram trabalhar, para a não produtividade, no Portugal de hoje") vou fazer por preferir sempre a concorrência. A não ser, claro, que a Rita Andrade me bata à porta.

Post hoc ergo propter hoc

Tiago Moreira Ramalho, 29.10.11

Julgo que a relação causal que Pedro Lains aponta no seu blogue salta à vista. É de fundamental clareza que o facto de um comentador na televisão pública defender que a democracia é um regime bom para os países do Norte, mas mau para os países do Sul deriva directamente das «acções» do «Pedro», do «Vítor» e do «Álvaro». Eu, como Pedro Lains, sou muito apoiante da democracia, e penso que tudo aquilo que pode levar um comentador na televisão pública a defender que a democracia é um regime bom para os países do Norte, mas mau para os países do Sul deve ser evitado. Sugiro, portanto, que se arrume com a austeridade imediatamente. E com a lógica, também.

Nós amamos-te!

Tiago Moreira Ramalho, 28.10.11

A Douta Ignorância tem um novo autor. O processo negocial foi complexo e moroso. A principal causa do conflito foi o pagamento. É certo que não pagamos nada, no entanto não conseguíamos decidir se deveríamos pagar esse nada nas tradicionais catorze tranches ou nas europeias doze. O novo autor, alheio a tudo isto, graças aos céus, não teve dizer na matéria, mas a disputa foi cerrada no ceio dos actuais autores. Eu, que temia futuras necessidades de austeridade, propunha as catorze tranches - «É mais fácil de cortar nisso», argumentava. A Priscila, que tinha acabado de pintar as unhas com que atacou um comentador assanhado nos assédios, dizia que do ponto de vista económico é indiferente - «Isso não faz diferença nenhuma desde que o salário anual seja conhecido, porque o agente-racional-que-estamos-a-convidar certamente optará por suavizar o seu consumo depois, financiando-se durante os meses em que recebe menos e pagando essa dívida nos meses em que recebe mais». O Rui aqui, confuso, pousou a edição antiga da Gina e começou a prestar atenção. O Zé, pouco dado a essas coisas de agentes racionais e financiamentos, disse que não se pagava salário - «Dêem-se-lhe senhas para se alimentar, para se vestir e um T0 em Alfragide e pronto». «Zé», chamámos em coro, «não te esqueças que nós só estamos a discutir a melhor forma de não lhe pagar». «Vão para o caralho!», gritou, já cansado de tanta discussão, o Bruno, e correu para a biblioteca mais próxima. Sentado na sua mesinha, com o «Cem Anos de Solidão» aberto na página em que a mãe do José Arcadio “achava que a sua desproporção [do falo] era uma coisa tão desnaturada como o rabo de porco do primo”, puxa do bloco de notas e, numa confissão feliz, escreve a si próprio que este é o melhor blogue em que já escreveu. Com as pernas entrelaçadas por baixo da cadeira escreve, no fim, «Eu amo-vos!». Sê bem-vindo, Vasco Barreto. Nós amamos-te!

Infiltrações [3]

Tiago Moreira Ramalho, 25.10.11

Não se pense, no entanto, que defendo uma torneirinha de dinheiro para ex-titulares de cargos públicos. Não julgo que faça o mínimo sentido e agrada-me bastante que já não exista para os actuais titulares. Há, ainda assim, que perceber que estas subvenções fazem parte do «salário» de quem este coberto pelo regime anterior (quando entraram na actividade política, isto era garantido). E a minha geração não pode simplesmente cuspir nos contratos que a geração anterior candidamente assinou. A minha geração, tal como o filho do pai bêbado, tem de honrar os compromissos passados.

A situação actual é dificilmente atacável. Deixa-se aqueles que entraram na actividade política com o regime anterior manter a subvenção até que morram. É aquilo a que têm direito. Ao mesmo tempo, os «novos» políticos já entram na actividade sabendo que a pensão não virá. É o mesmo que diminuir o salário atribuído pelo serviço público. Temos um sistema dual, próprio de uma transição legítima. Radicalizar leva apenas a que o país se torne gradualmente num inferno de imprevisibilidades – excelente para a austeridade, assassino para o crescimento.

 

P.S.: Este texto foi revisto depois da correcção que o Luís Lavoura fez em comentário.

Infiltrações [2]

Tiago Moreira Ramalho, 25.10.11

Um corte temporário numa transferência de dinheiro contratualizada (seja uma pensão ou um subsídio) pode, no limite, ser encaixado nessa brincadeira do «interesse nacional». Afinal, entre perder umas centenas ou milhares ou perder tudo, julgo que a pessoa de bem optará pela primeira, até porque o efeito de longo-prazo de um corte temporário é praticamente nulo.

Já o corte definitivo assume contornos especiais. Todas as minhas acções no presente – nomeadamente as minhas opções de consumo, poupança e, até, risco – dependem do meu rendimento e das minhas expectativas de rendimento. Podemos não o perceber em todos os momentos, mas quando gastamos dinheiro, assumimos que o nosso salário deste mês não é o último (caso contrário, dificilmente compraríamos uma casa). Claro que esta expectativa pode ser mais ou menos correcta – afinal, há gente que entra em incumprimento. No entanto, é perfeitamente legítima quando a lei nos garante que aquele rendimento é seguro até morrermos.

Os «políticos», essa escumalha, tinham (e ainda têm) uma lei que lhes garantia (e ainda garante) uma subvenção vitalícia decorrente do serviço público (bom ou mau) que prestaram. Isto é um contrato entre o Estado e um conjunto de pessoas. E sendo um contrato, não pode ser rasgado ao sabor da conveniência. O populismo da ‘elite opinadeira’ não mata, mas mói. Mói uma vez mais a dignidade da actividade política e, pior, atreve-se a moer o rule of law.

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