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A Douta Ignorância

Política, Economia, Literatura, Ciência, Actualidade

A Douta Ignorância

Política, Economia, Literatura, Ciência, Actualidade

Todo cambia

Rui Passos Rocha, 31.03.12

Resignation is confirmed desperation, escreveu algures Thoreau. Pensei nisto há dias quando duas cenas do Shawshank Redemption me aguçaram o traumatismo interno: uma é aquela em que o personagem principal arrisca pancada e solitária por ousar encher de ópera os tímpanos da prisão - porque, como dirá depois de cumprida a pena pelo ultraje, há coisas que nem à bastonada nos podem arrancar a não ser que o deixemos. À bastonada ou à agulhada na uretra, diria Alekos Panagulis. A outra é a cena da evasão em que ele rasteja por 500 metros de esgoto para desembocar no mar da liberdade. Tratado como merda, o homem livre perde o pejo de esfregar a cara na merda, sua e dos outros, mesmo a dos merdosos, se o troco é mandar a merda para aonde ela pertence. Um tipo assim não vai parar ao boletim de voto. Ainda bem.

A douta comuna

Rui Passos Rocha, 29.03.12

Soube hoje que o primatólogo Frans de Waal verificou num estudo que recompensas iguais para igual trabalho geram harmonia numa comunidade de macacos, mas recompensas desiguais criam tumultos. A tarefa, se não me falha já a memória, era transportar cubos e a recompensa inicial foi de um pepino a cada macaco. Nesta altura todos trabalhavam bem e desempenhavam a tarefa em semelhante período. Quando os investigadores começaram a oferecer uvas em vez de pepinos a alguns dos macacos deu-se a confusão.

 

Porque se trata de primatas, lembrei-me deste post de Chris Dillow sobre a desigualdade de rendimentos no futebol. No caso, o autor argumenta que o Arsenal faria melhor em não renovar contrato com o craque Van Persie porque, segundo um estudo, o rendimento global da equipa tenderá a decair. “The authors estimate that if a team changes from everyone being paid the same wage of €600k pa (the average in their sample) to a superstar earning €1.5m pa and everyone else in the team getting €510k, the chances of the team winning a game falls by 20 percentage points.” E pronto, agora era a parte da punchline mas.

Os agarrados da estabilidade

Vasco M. Barreto, 27.03.12

Given the weaker barriers to ending same-sex relationships, we might anticipate that there would be fewer long-term relationships among lesbians and gay men compared with heterosexuals. Unfortunately, we currently know little about the longevity of same-sex relationships. No information comparable to divorce statistics for heterosexual marriages is available. Several studies have documented the existence of very-long-lasting gay and lesbian relationships (e.g., Johnson 1990, McWhirter & Mattison 1984). Longitudinal studies provide further clues about relationship stability. In a five-year prospective study, Kurdek (1998) reported a breakup rate of 7% for married heterosexual couples, 14% for cohabiting gay male couples, and 16% for cohabiting lesbian couples. Controlling for demographic variables, cohabiting gay and lesbian couples were significantly more likely than were married heterosexuals to break up...  Annual Review of Psychology (2007) Vol. 58: 405-424

 

Nas suas crónicas "A Adição Gay" (I e II) e na discussão que tem prosseguido com a Ana (Matos Pires), Pedro Picoito foi acusado de usar referências bibliográficas antigas. Esta é a mais actual, entre as robustas, que consegui encontrar. Curiosamente, apesar das diferenças de grau, a conclusão vai no mesmo sentido das conclusões dos artigos que o Pedro cita. Admitindo que há agora consenso sobre este detalhe, só precisam de me convencer das virtudes da estabilidade do casal a qualquer preço para a vida dos filhos. Podem usar referências bibliográficas de qualquer ano e também os conselhos do pároco da vossa comunidade, que devem vir assinalados com a expressão "personal communication" entre parêntesis.

Jeffrey Sachs

Priscila Rêgo, 16.03.12

O Henrique Raposo fala hoje sobre Jeffrey Sachs, autor de O Fim da Pobreza. As críticas, referidas em baixo, são recorrentes nalguns meios. Talvez valha a pena uma clarificação. 

 

O que vende são coisas como este livro de Jeffrey Sachs, que consegue falar de pobreza à escala mundial sem dar destaque a um pormenor: o aumento brutal da classe média mundial nas últimas décadas. (...) Este tipo de livro dá a ideia de que nada mudou, aliás, dá a ideia de que as coisas mudaram para pior. Há um nome para isto: desonestidade intelectual (...) O esquema mental e moral de Sachs vê o "outro" num estado de completa dependência económica e até moral do homem ocidental. Se nós não ajudarmos com a nossa caridade, o "outro" vai morrer à fome (...) Como tem salientado Dambisa Moyo, seis décadas de ajuda a África tiveram um efeito nulo. Mas isto são factos, e os factos não interessam a quem demonstra tanto amor pela boa vontade, pela pureza de coração, pela Humanidade. 

 

Quem lê este tipo de coisa pode ficar a pensar que Jeffrey Sachs é uma espécie de activista de Esquerda, um Noam Chomsky da economia do desenvolvimento. Na verdade, Sachs começou a sua carreira como economista do FMI, participando regularmente em... programas de ajustamento. Esteve na Bolívia a combater a hiper-inflação (alguém quer imaginar a receita?) e preparou os planos de transição de uma parte do Leste comunista: na Polónia, com grande destaque, e na Rússia, num plano menos relevante. O "ideólogo da pobreza", como o Henrique lhe chama, foi o Poul Thomsen da década de 90. 

 

Um tipo do FMI dificilmente precisa que lhe ensinem as virtudes da globalização e do mercado. Não é de estranhar: ele ajudou a criar o mercado numa parte da Europa. Sachs não nega a importância da globalização, as potencialidades da concorrência ou os milagres do Sudeste asiático nas últimas décadas. O elemento central do livro não é que a situação da maioria das populações não melhorou, o que seria de facto de facto uma alegação pateta, mas sim que uma grande franja de países africanos tem ficado apartada desta abundância. São afirmações substancialmente diferentes, que deveriam ser óbvias até numa leitura apressada. 

 

Por que é que África é especial? Há várias explicações: constrangimentos naturais, como um ambiente propício à propagação de doenças; uma geografia fragmentada e ausência de vias de contacto, que dificultou historicamente a evolução dos arranjos institucionais que propiciam a emergência dos mercados; abundância de recursos naturais, com tudo o que isso implica para a importância relativa da exploração versus comércio; e por aí fora. Os economistas do desenvolvimento já têm alguma dificuldade em eliminar os entraves que inibem o desenvolvimento dos mercados - mas o problema em grande parte da África subsaariana é que praticamente tudo aquilo que é um pré-requisito para o funcionamento dos mercados está, aparentemente, ausente. É como arrumar a garagem: não se sabe sequer por onde começar.

 

A especificidade de África não é uma excentricidade de Sachs. Paul Collier, antigo director de estudos do Banco Mundial, tem trabalho extenso acerca do assunto (este livro é um bom sítio por onde começar). O insuspeito William Easterly, autor de The White Man's burden, também não nega que o continente tenha problemas específicos que o tornam solo pouco fértil para a aplicação da receita habitual. Noutro registo (e de forma reconhecidamente mais especulativa), David Landes e Jared Diamond também apresentam explicações interessantes.

 

O diagnóstico não é assim tão diferente. A divergência vem depois: e então o que é que se faz? Sachs propõe uma mega plano de ajuda externa, em áreas chave como a saúde, educação e infra-estruturas. Easterly desconfia da "micro programação", que acha pouco eficiente, e Collier sugere um conjunto de reformas mais institucionais, acompanhado de financiamento mais focado (por exemplo, formação). As diferenças são muito mais subtis do que parece à primeira vista. Às vezes, é preciso ir para além das headlines.

 

Sachs poderá ser acusado de ter uma visão demasiado optimista das possibilidades reais daquilo que pode ser atingido pela ajuda externa. E o seu livro tem seguramente um elemento romântico, provavelmente a piscar o olho aos leitores mais activistas. Mas daí a apresentar o homem como um Dalai Lama desmiolado que não sabe como funcionam os mercados nem os resultados da globalização - e acabar a chamar-lhe desonesto - vai uma distância, enfim...  

 

Energia e sinalização

Priscila Rêgo, 15.03.12

O João Miranda respondeu ao meu post acerca de energia. Diz ele:

 

Privatizar a EDP com a intenção de sinalizar uma abertura ao investimento estrangeiro e de seguida criar um imposto especial sobre a EDP sinaliza oportunismo, falta de rumo e navegação à vista.  O que se está a dizer aos investidores estrangeiros é mais ou menos isto: “invistam cá que a gente já inventa um imposto para vos depenar” (...) Mesmo um país que não aparenta estar no caminho do socialismo tem que dar garantias de que os investidores não serão fortemente taxados depois de os investimentos estarem feito no território que esse país domina.

 

Argumentar com o João Miranda pode ser um exercício arriscado se não soubermos onde nos estamos a meter. Deixem-me deixar bem claro no que é que concordamos, no que é que discordamos e de que forma é possível saber quem tem razão. 

 

A sinalização é importante porque revela intenções que não são directamente observáveis. Através do comportamento de um agente, é possível construir uma opinião acerca das suas intenções e formar expectativas em relação ao seu comportamento futuro. Mas um único comportamento pode sinalizar coisas diferentes. Se eu reagir a um assalto à faca com confiança e coragem, posso revelar ao meu agressor que tenho um background em artes marciais suficientemente sólido para o fazer pensar duas vezes; ou, alternativamente, que perdi a sanidade mental. À partida, e sem ter mais elementos de contexto, é difícil saber de que forma é que o meu comportamento vai ser lido (é por isso que o bluff pode ser um pau de dois bicos, como qualquer instrutor de defesa pessoal deverá dizer aos seus alunos).

 

Pela mesma razão, não é possível saber ao certo qual a leitura que os investidores farão de um "rasgar de contratos" com a EDP. Talvez fiquem mesmo a pensar que isto é uma república das bananas onde vigora o oportunismo e a falta de rumo. Ou talvez apenas reforcem a ideia de que o Governo está comprometido em acabar com rendas económicas, desblindar grupos protegidos e criar um ambiente de concorrência. Não há dúvida de que os dois sinais estão a ser enviados. A questão é: qual deles prevalece? Esta questão é empírica.  

 

Pessoalmente, parece-me óbvio que todos os elementos convergem no sentido de reforçar a minha interpretação, e não a do João Miranda. Há um Memorando de Entendimento, que deixa explícito que os contratos teriam de ser revistos, e que certamente já seria do conhecimento dos novos accionistas (e se não era, devia); há mudanças profundas no mercado laboral; há privatizações; há uma nova lei da concorrência e uma reforma do sistema de justiça. Estes elementos não servem de seguro contra todos os riscos, mas fornecem um contexto que ajuda a interpretar a decisão de renegociar os contratos. E só com muito boa vontade é possível defender que este contexto confirma a interpretação do João Miranda.

 

Há dois exemplos que ilustram bem esta questão. O primeiro é a Islândia. A Islândia não só entrou em "default" externo (através da falência do sector bancário) como instalou um controlo de capitais vigoroso para evitar o colapso da moeda nacional quando os mercados entraram em ebulição. Mas este bloqueio legal aos activos não foi lido pelos investidores como um sinal de que a Islândia estava a preparar um esquema maquiavélico de controlo de capitais alheios. É por isso que três anos depois do colapso a Islândia já voltou aos mercados e voltou a atrair investimento directo estrangeiro.  

 

O outro exemplo é dado pelo leitor NS, que diz que:

 

Ainda que pareça justa a medida de rasgar os contratos de aquisição de energia a longo prazo e os contratos com as renováveis (eu teria um gosto especial nestes últimos), a verdade é que isso poderia ter efeitos altamente perniciosos sobre a atractividade do investimento e, dessa forma, penalizar fortemente os cidadãos que já sofrem medidas que não são aplicadas às empresas. No fundo, a ideia é tão atractiva como o incumprimento da dívida.

 

Na verdade, a evidência empírica aponta noutro sentido. Este estudo do FMI, por exemplo, conclui que os "defaults" tendem a ter efeitos curtos ("short-lived"), de um ou dois anos no máximo. Todos os "defaults"? Não exactamente. Os "defaults estratégicos", em que a dívida deixa de ser servida para evitar fazer cortes orçamentais, são altamente punidos nos mercados, o que faz com este tipo incumprimento seja, na prática, muito raro. A maior parte dos Governos prefere levar a austeridade até ao limite em que se torna óbvio, junto dos investidores, que não pagar é uma necessidade, e não uma escolha. Mas, a partir daí, os efeitos negativos são controlados. 

 

Porquê? Uma explicação possível: se o incumprimento é uma necessidade, não há motivos para pensar que o Estado em causa é um aldrabão a quem não vale a pena emprestar dinheiro. Talvez apenas tenha feito erros de cálculo. Os mercados são forward looking: se as perspectivas continuam boas (ou se se tornam boas em virtude de ter havido uma limpeza da dívida), o negócio continua.

 

Agora, há uma ressalva a fazer. Não é óbvio, à primeira vista, qual é o nível de "sangria" exigido pelos mercados antes de concederem a redenção a quem rasgou contratos. Mas se cortar 20% dos salários da função pública, reduzir pensões e gastos com medicamentos não chegam como prova antes de rever os subsídios pornográficos da EDP, eu vou ali e já venho.

 

 

 

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