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A Douta Ignorância

Política, Economia, Literatura, Ciência, Actualidade

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Anarquista aos fins-de-semana

Priscila Rêgo, 21.09.11

Rui Tavares escreve hoje no Público acerca da economia belga. "A vingança do anarquista" é acerca do "enigma" em torno do caso belga, uma economia que, não tendo Governo nem as contas em ordem, conseguiu passar pelos pingos da chuva enquanto Grécia, Irlanda e Portugal caíam sucessivamente de joelhos às mãos dos mercados. O artigo ainda não está on line, pelo que reproduzo os dois primeiros parágrafos.

 

Aqui há tempos havia um enigma. Como podiam os mercados deixar a Bélgica em paz quando este país tinha um défice considerável, uma dívida pública maior do que a portuguesa e, ainda por cima, estava sem governo? Entretanto os mercados abocanharam a Irlanda e Portugal, deixaram a Itália em apuros, ameaçaram a Espanha e mostram-se capazes de rebaixar a França. E continuaram a não incomodar a Bélgica. Porquê? Bem, - como explica John Lanchester num artigo da última London Review of Books - a economia belga é das que mais cresceu na zona euro nos últimos tempos, sete vezes mais do que a economia alemã. E isto apesar de estar há 16 meses sem governo.

Ou melhor, corrijam essa frase. Não é "apesar" de estar sem governo. É graças - note-se, graças - a estar sem governo. Sem governo, nos tempos que correm, significa sem austeridade. Não há ninguém para implementar cortes na Bélgica, pois o governo de gestão não o pode fazer. Logo, o orçamento de há dois anos continua a aplicar-se automaticamente, o que dá uma almofada de ar à economia belga. Sem o choque contracionário que tem atacado as nossas economias da austeridade, a economia belga cresce de forma mais saudável, e ajudará a diminuir o défice e a pagar a dívida.

 

Este post assenta num pressuposto errado: a ideia de que a austeridade é uma opção. Não é. Grécia, Portugal e Irlanda não decidiram simplesmente apertar o cinto para combater a crise. Pelo contrário, o aperto do cinto foi a consequência de uma crise que teve como principal resultado o colapso dos canais habituais de financiamento. Em Abril de 2010, com um défice de 9,4% do PIB assumido nas contas do ano anterior, a meta do Governo ainda era reduzir o buraco para 8,3% no ano em curso. O Orçamento ainda falava em estimular a economia e Sócrates pregava as virtudes do cainesianismo.

 

A austeridade não foi uma ideia que caiu do nada. Foi imposta de fora a partir do momento em que os habituais compradores de dívida, que até aí asseguravam com o seu dinheiro que o Estado podia gastar mais do que recebia, ficaram receosos com a acumulação de compromissos. Dizer que o Estado podia combater a crise gastando mais é não perceber que a crise consistiu na impossibilidade de o Estado continuar a fazer business as usual. O FMI não impôs cortes de despesa: amenizou-os, garantindo que pelo menos uma parte do défice podia continuar a ser financiada através das suas linhas de crédito.

 

É curioso que aquilo que Rui Tavares diz agora acerca da Bélgica era dito há pouco mais de um mês acerca da Itália. Tal como a Bélgica, também a Itália tinha uma dívida altíssima (mais de 100% do PIB) e parecia convenientemente abrigada da ira dos mercados. Mas a primeira faísca acendeu-se e a Itália não teve outro remédio que não começar a pôr a casa em ordem. Não foi por opção: foi por necessidade. O meu palpite é que o anarquista favorito de Rui Tavares vá seguir o mesmo caminho quando - e se - a crise da dívida começar a pairar por aquelas bandas (atenção: a ideia de que a austeridade é uma opção pode ser sustentada se admitirmos o financiamento monetário da dívida, como faz aqui o João Galamba. Mas do texto do Rui Tavares não se extrai que ele esteja a pensar em algo do género).

 

Mas podemos recuar um pouco e tentar responder à pergunta do Rui Tavares: por que é que a Bélgica ainda não foi "atacada"? Um palpite muito meu é que foi por sorte. Isto pode parecer heterodoxo quando ouvimos analistas, comentadores e economistas a justificarem a subida do juros numa base diária com défices, dívida, perspectivas de crescimento, crises políticas e afins. Mas a verdade é que quando olho para os países que estão mais pressionados não encontro grandes traços em comum. É verdade que, em média, têm situações orçamentais mais débeis - mas a diferença é tão ténue que não justifica as discrepâncias enormes que se notam nos juros pedidos no mercado secundário. A Espanha e Irlanda, por exemplo, têm menos dívida pública que a Alemanha. Olhar para os fundamentais e extrair daí justificações é um exercício tão débil que até agora tem sido sempre feito a posteriori.

 

O curioso é que mesmo jogando por estas regras a tese do Rui Tavares não tem grande sustentação. Rui Tavares diz que o "sucesso" belga está no crescimento, sete vezes maior do que o alemão. Bom, em 2010 o PIB alemão cresceu 3,6%, o que não é bem sete vezes menos do que os 2,2% da Bélgica. Talvez o Rui esteja a falar de um período mais alargado - mas então que tem isso que ver com o desgoverno dos últimos 16 meses? E mesmo entre 2001 e 2010 o crescimento belga foi completamente normal - 1,4%, pouco mais que a média europeia (1,3%). Se queremos falar dos países que cresceram mais, temos de falar da Eslováquia (4,9%). Ou da Irlanda (2,6%). E daí, talvez não seja boa ideia.

 

Mas então e a dívida? Vamos olhar um pouco para a dívida pública em percentagem do PIB. Rui Tavares, que estudou a economia belga para escrever um artigo de jornal (não estou a fazer ironia: o Rui Tavares não tem nenhuma obrigação de perceber disto nem de seguir o asunto) olha e vê isto:

 

 

Já os tipos que ganham a vida a apostar dinheiro nos mercados financeiros e que seguem o assunto há mais algum tempo vêem algo ligeiramente diferente.

 

 

A dívida pública belga é alta, mas apesar dos défices dos anos mais recentes, e não por causa deles. Entre o início e meados da década de 1990, a Bélgica teve défices orçamentais na ordem dos 8% do PIB. A partir daí, começou um caminho de correcção da trajectória orçamental: primeiro cortou o défice para os 5% em 1996, depois para 2% em 1997 e a partir daí com saldos globais relativamente equilibrados. Com as contas no zero, foi só deixar o crescimento fazer o resto e provocar a erosão do valor da dívida em percentagem do PIB. Entre 1996 e 2008, o défice só por uma vez ultrapassou os 2% e nunca atingiu o limite do PEC (3%). 

 

Perante isto, não é muito difícil perceber por que é que a Bélgica continua tão escondidinha no seu canto. Há a percepção de que a situação está a ser controlada. A Bélgica começou a pôr a casa em ordem em meados da década de 90 - em ano de recessão, vejam lá... - e durante o "boom" de crédito dos últimos 10 anos obteve excedentes orçamentais. A tendência é para a dívida cair; em Portugal, é para aumentar. O que é que queriam? Sim, eu não gosto de olhar para fundamentais - mas se vamos fazer de psicanalistas dos mercados, olhemos pelo menos para os números certos.

 

Mas o mais irónico é que, no caso específico de Portugal, acabo por concordar com o Rui Tavares: talvez tivesse sido melhor não ter Governo. Mas as razões são diferentes. Ao contrário do que ele afirma na peça, no Portugal dos últimos dez anos os Governos não "têm servido para dizer-nos que vão cortar nos apoios sociais". Têm servido para aumentar a despesa à tripa forra - despesa militar, social, administrativa, educativa e tudo o mais incluído. Cada Governo que vem promete reduzir a despesa. Acaba, invariavelmente, por aumentá-la.

 

E sem Governo? Se não houvesse Governo, provavelmente entraríamos em regime de gestão. Não era possível fazer austeridade pura e dura, mas com os disparates que se teriam evitado ela também seria provavelmente dispensável. Sem Governo, vigorava o Orçamento do ano anterior, em sistema de duodécimos. Em Portugal, não é coisa nova: aconteceu em 2010 e o Governo implorou à Oposição que aprovasse um novo documento com o argumento de que com duodécimos era impossível controlar o défice. Curiosamente, ou talvez não, a entrada em vigor do novo OE permitiu (quem diria...) aumentar a despesa e o défice. Se é para controlar o monstro assim, venha daí esse anarquista.

  

 

  

 

 

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