Ninguém salvou o coronel
Perante as imagens dos últimos momentos do coronel Khadafi - impotente, ensanguentado, a pedir clemência – a nossa moralidade flexível socorre-se de ensinamentos bíblicos (quem mata pela espada, etc.) e de uma ideia de justiça poética, de equilíbrio cósmico entre a vida que se leva e o fim que se tem. Ora, é precisamente a natureza daquelas imagens que me leva a pensar no absurdo dos conceitos de justiça e política, de bondade e, por estranho que possa parecer, de clemência. Absurdo aquele espectáculo de sede de sangue, primitivo e tribal, comparado com a respeitabilidade desejada por um Conselho Nacional de Transição de fato e gravata, sóbrio e sério, a acalmar o mundo e a proclamar a libertação do povo líbio. Que palavras são estas: Conselho Nacional de Transição, democracia, eleições, justiça? Onde é que, nessa linguagem tranquilizadora e grandiosa, prenhe de futuro e de ordem, se enquadra a morte de um homem daquela maneira? A natureza humana em acção, sem freios morais, indiferente à benevolência da linguagem, assusta. Não cabe nos livros, nem sequer em palavras que pensamos duras: ódio, violência, barbárie. A natureza humana que mata um homem daquela forma não conhece barreiras ou limites, é apenas um desejo de morte em movimento. Esperar que, Khadafi, uma vez capturado, tivesse um fim diferente, é ter mais fé nas palavras do que nos homens. E a única palavra que aqueles homens podiam dizer naquele momento era “morte”. Esqueçam justiça, liberdade, futuro. Morte. Não havia ali mais nada. Morte. Nada do que ali se fez serve para a reivenção do país. Morte. Viva a morte!