Desejos
Apesar de muitos dos nossos marxistas nunca terem lido mais do que o Avante!, essa narrativa em folhetins da decadência de uma certa esquerda portuguesa, a verdade é que eles reproduzem de forma bem catita um desejo muito marxista relativamente ao papel do trabalho na vida das gentes. A ideia de que a divisãodo trabalho desumaniza o homem, que o torna um alienado até de si próprio e que a especialização impede que o trabalho assuma a sua forma suprema: a expressão da natureza do próprio homem. Claro que os nossos marxistas não dizem isto, muito menos desta forma. Eles falam no direito a trabalhar no que se gosta (seja ou não de forma especializada), o que nem parece absurdo – a ideia é até bastante apelativa, diria eu.
O problema é que isto é de facto mero desejo. E um desejo bastante capitalista, diga-se, no sentido em que uma aproximação deste estado em que trabalho e lazer se tornam um só só é possível com os desenvolvimentos que o capital traz. Imaginará alguém que o homem nos primórdios da espécie encarava a caça e a colocação da sua própria vida em risco como uma expressão última da sua essência? Não me aventuro em contendas existencialistas, mas resta pouca essência para exprimir quando a existência finda.
O desejo marxista de um homem sem a escravidão do trabalho, que pode ser artesão de manhã, bailarino à tarde, pugilista à noite parte de um erro de análise fundamental: o de que a sobrevivência não está em risco. E para sobreviver, lamenta-se, não podemos simplesmente espalhar-nos a nós mesmos e à nossa essência connosco sem arranjar pão para pôr na mesa. Não é por acaso que os Estados que certo dia se lembraram de libertar o homem da escravidão do capital foram precisamente aqueles que trouxeram as mais abjectas formas de escravidão ao século XX.