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A Douta Ignorância

Política, Economia, Literatura, Ciência, Actualidade

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A ilusão do consumo fácil

Priscila Rêgo, 02.01.12

Qual é o problema deste gráfico? Há algumas óbvias. Não contabiliza toda a dívida pública, não compara o crescimento da dívida com o crescimento da economia e não inclui qualquer correcção para efeitos de catching up. Mas estas nem são as principais limitações. O mais importante é que o nível de dívida pública, por si mesmo, não nos diz muito acerca do suposto "consumo fácil".

 

 

Vamos por partes. A forma habitual de pensar acerca da dívida pública é algo do género: primeiro, endividámo-nos até aos cabelos - vivemos "acima das nossas possibilidades"; mas como o "consumo fácil" só dura enquanto durar o dinheiro dos outros, há-de chegar a altura em que a dívida terá de ser paga. O problema é que o Julgamento Final chegou mais cedo do que pensavamos, e em vez de serem os nossos filhos e netos a arcar com o fardo da dívida, teremos de ser nós a fazê-lo. 

 

Mas esta visão "dona de casa" não se aplica ao Estado (e já vimos isso antes). Imaginemos que amanhã o IGCP emitia 100 mil milhões de euros de dívida pública e dava 10 mil títulos a cada português. A dívida pública nacional explodia: passava de 90 para 150% do PIB. Mas os activos dos contribuintes aumentavam exactamente na mesma medida. O fardo da dívida era contrabalançado, euro a euro, pela almofada do activo. Mas o país, como um todo, não devia nada a ninguém. Onde está o "consumo fácil"?

 

Bom... não há. O país deve a si mesmo - embora numa situação real a dívida pública esteja distribuída de forma menos homogénea, obviamente. O conceito de "consumo fácil" só faz sentido se a economia, no seu conjunto, estiver a consumir aquilo que não tem. Isto significa utilizar recursos que não possui, e é uma coisa que se traduz num défice externo: mais importações do que exportações (na prática não é bem assim, mas esta é uma forma simplificada de expor o assunto).

 

Quer isto dizer que o problema é o défice externo? Não necessariamente. Se um país é menos desenvolvido, o crescimento potencial - através da importação de tecnologias, de know-how e por aí fora - é maior do que em economias mais desenvolvidas. E por isso faz todo o sentido a criação de um défice externo. Para o país pobre, permite utilizar a produção futura para aumentar hoje os seus níveis de consumo; para o país rico que empresta dinheiro, permite aumentar a rentabilidade do seu capital. Um défice externo é frequentemente um jogo de soma positiva.

 

A conclusão a retirar daqui não é, portanto, que um défice externo é sempre uma coisa a evitar. Mas sim que só no contexto de um défice externo é que a a ladainha do "consumo fácil", da "dívida legada aos filhos e aos netos" faz algum sentido. E se alguém quer culpar algum Governo por vivermos "acima das nossas possibilidades", tem de mostrar não só que este foi responsável por gerar mais défices que os anteriores (ou vindouros), mas sim que estes défices se traduziram em desequilíbrios externos.

 

E, by the way, talvez convenha referir que só quando os défices do Estado se traduziram em défices externos é que Portugal precisou de recorrer ao financiamento do FMI (1979, 1983 e 2011). O que também reforça a ideia de que esta crise pode ser apenas a manifestação diferente daquilo que é, no fundo, apenas um problema de balança de pagamentos.

 

Por último, isto também não significa que a dívida pública não possa ser, por si mesma, problemática. Se a dívida atingir um ponto em que se torna insustentável e aforradores nacionais deixarem de a comprar, o Estado perde financiamento e segue-se um default: salários por pagar, serviços que deixam de ser prestados, etc. Isto é um choque de procura que pode atirar a economia para a recessão - mas é um problema macroeconómico, tal como um crash da bolsa ou um surto de falta de confiança. Não é um problema de um país que ficou refém dos credores. Como poderia? O credor é ele mesmo.

 

Leitura complementar: Debt is mostly money we owe to ourselves

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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