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A Douta Ignorância

Política, Economia, Literatura, Ciência, Actualidade

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Envidia sana

Vasco M. Barreto, 31.01.12

 

A maior biblioteca não se encontrava em Alexandria, nem é hoje a Library of Congress dos 29 milhões de livros. Também não é a biblioteca de Babel inventada por Borges, com as suas infinitas salas hexagonais, ainda que afirmá-lo pareça tão ridículo como dizer que o infinito peca por defeito, e até um sacrilégio, por ser Borges. Porquê correr tais riscos, então? Porque quem fez a Biblioteca de Borges chegou à omnisciência pela omnipotência, inventando todos os livros sem precisar sequer de os saber ler, bastando-lhe um passado eterno gasto a combinar todos os símbolos ortográficos de todas as formas possíveis, e todas as palavras, todas as frases, todos os parágrafos, todos os capítulos. Enfim, as interpretações para este delírio do porteño são várias, mas sirvo-me desta: a sua biblioteca é distópica, pois corresponde a um genocídio dos autores, enquanto as nossas finitas e concretas bibliotecas testemunham a vitória de cada autor sobre o seu previsível suicídio. A maior biblioteca de todas será a dos livros que foram pelo menos alguma vez imaginados por alguém. Não tem morada, como a Library of Congress, mas são mais as pessoas que a visitam e para ela contribuem; também não tem tamanho, na verdade, o que a deixa a salvo da trapalhada que Borges criou, uma quadratura do círculo em versão de hexagonalidadedo infinito, ou não fosse o hexágono uma solução perfeita das abelhas para o aproveitamento do espaço, mas que, justamente por isso, só faz sentido na finitude.

 

Sabem do que falo. É a biblioteca onde guardamos o grande livro de História do senhor que também gostaria de escrever a biografia de Hitler mas não sabe Alemão, o livro de ideias políticas que um amigo garante que um outro senhor sempre muito ocupado ainda escreverá, o romance sobre Paris que uma senhora já desistiu de anunciar, os planos por concluir de Pessoa, os tópicos de Luiz Pacheco, e aqueles recorrentes projectos editoriais megalómanos que as versões de autor em pdf não saciam, como a tal Spectatorà portuguesa - se não quisermos sair da paróquia que é Lisboa, nem recuar muito, nem ser exaustivo. Aliás, para intuir a vastidão da grande biblioteca contam menos os figurões e os malucos do que os nossos devaneios pessoais e os daqueles mais próximos, quando se deixam ir pela vaidade, ou não controlam a ansiedade, ou se convencem que o tesão criativo não murcha com a partilha do plano.

 

Em 2008, quando o Nuno Costa Santos me falou da ideia de escrever uma biografia do Assis Pacheco, não hesitei em arrumar logo o instantâneo volume na grande biblioteca. Pareceu-me uma belíssima ideia que ele jamais realizaria e escolhi uma boa encadernação. É claro que nada lhe disse, mesmo quando essa certeza foi crescendo à custa das respostas evasivas que ele depois começou a dar. Estava preparado para o perdoar, pois não seria mais um projecto pessoal falhado a trazer mal ao mundo, há um vasto corpo teórico a que podemos recorrer (a "vitória moral", o "Try again. Fail again. Fail better", o "Se hace camino al andar", o sportinguismo) e sempre que o homem sonha e a obra não nasce fico com a sensação de que, na verdade, Deus não tem um problema pessoal comigo, o que consola. Só que o Nuno pariu mesmo o livro e o meu alívio mesquinho transformou-se em envidia sana, uma sensação tão rara que gerações de linguistas, atarefados com as consonantes mudas, nunca entenderam ser urgente inventar-lhe uma expressão em Português.

 

Dou-te já os parabéns pela lombada, Nuno, ainda antes de ler a obra. Porque, no fundo, ninguém acredita naquele corpo teórico; materializar é o verdadeiro livre-trânsito para continuarmos a sonhar.

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