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A Douta Ignorância

Política, Economia, Literatura, Ciência, Actualidade

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Começar aos pouquinhos

Priscila Rêgo, 16.06.10

Será que diminuir o valor do Rendimento Social de Inserção é mesmo a melhor maneira de combater a fraude? Há boas razões para pensar que não. 

 

A primeira objecção é de princípio: o objectivo de um mecanismo de protecção social não é evitar que os seus beneficiários morram à fome ou que vivam nas ruas. Para isso existem o Banco Alimentar contra a Fome e esquemas de habitação social. O RSI existe precisamente para dar protecção a quem ainda não anda nu nas ruas mas está prestes a desligar-se da vida em sociedade devido a problemas financeiros. Propor ao Estado que pague menos para que a necessidade dos pobres lhes aguce o engenho é como propor a uma empresa que reduza custos deixando de comprar matéria prima. 

 

A segunda objecção é de cariz mais prático. Seja qual for o valor que se atribua ao RSI ou a outro benefício idêntico, o incentivo ao trabalho será sempre condicionado pelo valor do salário que o mercado laboral puder proporcionar. Por muito indigente que seja o RSI, basta que a alternativa seja pouco mais atractiva para fazer com que a propensão a trabalhar seja baixa. Num país em que o salário mediano está abaixo dos 700 euros, convém pensar no que serão os potenciais rendimentos das franjas sociais do último decil. 

 

A alternativa ideal para contornar este "efeito substituição" seria tornar a prestação social tão fixa quanto possível. Os benefícios são óbvios: tornando-se o RSI uma espécie de "subsídio universal", ninguém teria incentivo a não trabalhar para não perder esse apoio. Na prática, todos colheriam o fruto do seu trabalho adicional.

 

Infelizmente, o "efeito rendimento" agiria em sentido oposto, incentivando aqueles que apenas trabalham para ter um nível de vida mínimo a encostarem-se ao subsídio. Outro efeito nocivo seria a introdução de uma maior progressividade fiscal, que me parece inevitável. Apesar de até os mais ricos receberem o novo subsídio, a despesa adicional teria de ser paga por alguém. E, não sendo expectável que o fardo fosse uniformemente distribuído, seria inevitável introduzir mais uma distorção adicional. Não há mundos perfeitos.

 

Pensei durante algum tempo na possibilidade de introduzir alguma nuance no sistema que permitisse atenuar os efeitos nocivos dos incentivos dados. Mas, apesar de haver algumas ideias melhores do que outras, parece-me que é impossível neutralizar simultaneamente os efeitos "rendimento" e "substituição". Qualquer sistema tem sempre falhas e buracos através dos quais diferentes tipos de mandriões conseguem penetrar para encontrar um reduto seguro.

 

Mas há formas de tornar o sistema mais eficiente mesmo sem tocar no sistema de incentivos. Em pouco mais de trinta anos de democracia, foram criados milhares de apoios sociais, benefícios e prestações diversas. Para além do subsídio de desemprego, subsídio social de desemprego e RSI, há ainda o abono de família, apoio escolar, complemento solidário para idosos, uma horda interminável de benefícios fiscais e isenções, apoios etários (estágios profissionais, Porta 65, etc.), prebendas sectoriais (Caixa dos Jornalistas, subsídios a camionistas) e uma lista incontável de outras pequenas medidas. Há algum tempo, cheguei a descobrir no site do IEFP um apoio surreal: a descida da Taxa Social Única a empregadores que contratassem antigos toxicodependentes.

 

Muitos destes apoios são desconhecidos do público (infelizmente, uma parte da Esquerda só se lembra que a informação tem custos quando é para bater na ideia de que os mercados são perfeitos...). E muitos são contraditórios e incongruentes entre si, empurrando e puxando em sentidos opostos. Mas, apesar de os efeitos muitas vezes se cancelarem, os custos de funcionamento somam-se. Aos poucos, o sistema cresce e espalha-se, levando à instalação de uma pesada e burocrática máquina administrativa. A máquina absorve imensos recursos mas utiliza-os em grande parte para a sua própria manutenção. Como é grande e ineficiente, talhada aos poucos e por várias cabeças, o produto que sintetiza não sai embalado e pronto a consumir: pelo contrário, escorre pelas frinchas e é espirrado pelas fendas à medida que a abanam.

 

Uma reforma simples e eficaz da Segurança Social pode começar por consolidar grande parte dos apoios num único esquema, transversal a sectores, idades e sexos. Mesmo que os efeitos do sistema de incentivos se mantivessem, uma reforma deste género permitira enormes ganhos de eficiência na gestão do dinheiro e na sua alocação. Implicaria menos despesas administrativas, menos tempo perdido à procura do "apoio certo", uma acção social mais rápida e maior capacidade de fiscalização. Seria possível dar mais dinheiro a mais pessoas. Excepto, talvez, aos funcionários da Segurança Social, assistentes sociais e políticos que vivem de soundbytes no telejornal.

 

O que, bem vistas as coisas, talvez ajude a explicar por que é que isto nunca foi tentado...

 

 

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