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A Douta Ignorância

Política, Economia, Literatura, Ciência, Actualidade

A Douta Ignorância

Política, Economia, Literatura, Ciência, Actualidade

Separados

Rui Passos Rocha, 29.06.12

Enquanto não faço dele refeição, quero acreditar que em parte do Letters to a Young Contrarian Christopher Hitchens deixou umas notas sobre o quão temperada deve ser a exposição de cada um a opiniões contrárias. Cheira a óbvio (será?) que o espírito crítico seja tanto mais afinado quanto mais desenferrujado se estiver no debate lógico, mas talvez seja esticar a corda que isso signifique procurar constantemente a presença de advogados do diabo. Não faltam momentos em que, a bem de paliar o desassossego, se quer como companhia quem sinta e pense algo semelhante.

 

Momentos significativos. Pode ser um jogo de futebol, uma ida à mesquita ou a um concerto. No meu caso, hoje, um filme ao ar livre. Assim como me teria custado ouvir que Portugal - que afinal perdeu por uns centímetros de ferro - jogou mal contra a Espanha, fez-me comichão quando um grupo vizinho se perguntou, sobre Uma Separação, se «esta merda foi nomeada para um Óscar». Nesses segundos, como do início ao fim do filme, estava eu preso à intensidade do retrato: dois personagens em choque tentam resolver-se em tribunal mas ambos relatam a sua versão dos factos sabendo que, se incriminados, terão pela frente as grades da prisão. Esta tensão é interessante sobretudo por ser moldada por preceitos religiosos (o filme é iraniano). Para não deixar isto no abstracto deixo o trailer:

 

 

Ao contrário do futebol ou da religião, em que a escolha de trincheiras é praticamente aleatória (ou porque se nasceu naquele país, ou porque se assistiu àquele jogo com os sentidos particularmente apurados), no caso da cultura as preferências evoluem de forma menos emotiva e mais gradativa. Não estivesse toldado pelo desprezo eu teria tido interesse em perceber o porquê daqueles comentários tão vincadamente depreciativos. Longe de «uma merda», Uma Separação é no mínimo interessante pelo enredo tão improvável que expõe falhas gritantes de sociedade patriarcais e cegas de leis taxativas sem alíneas nem excepções. Como o são os mandamentos.

 

Vale-me, para a sensação de pertença, ter ouvido de outros em volta comentários muito positivos sobre o filme. Mesmo que tenham sido poucos, se alguns se embasbacaram com o argumento então já terá valido a pena. Aos outros, os Miguéis Relvas que perderam o seu tempo e privatizariam a Cinemateca e a RTP2 sem grande negociação, desejo que um dia digam de algo o que Herman José disse sobre a BBC: que vê-la mudou-lhe a vida - como este filme, e outros antes dele, contribuíram para que a minha desse umas voltas ainda muito incompletas. Não é a arte que deve rebaixar-se, é a gente que deve elevar-se (palavras de Oscar Wilde). Quantos mais melhor. Haja investimento para isso.

Quão liberais eles são

Rui Passos Rocha, 09.04.12

Como não costumo ler bloggers liberais de ano bissexto, não acompanhei como reagiram os insurgentes e demais americaneiros à proibição das pensões antecipadas. Mas imagino os bocejos: apesar de poucos trabalharem fora da zona de conforto da administração pública, raros terão sido contratados pelo Estado há menos de sete anos, o prazo limite da proibição. Afagados pelo cobertor do Estado ou, porque se trata de empreendedores de alto nível, contratados para esporádicos ajustes directos, não foi para eles que se trilhou o caminho desta servidão. Estes burgueses à portuguesa vão continuar a poder reformar-se quando acharem melhor. Farão os seus cálculos, verão os prós e contras dos incentivos do sumo patrão, e tomarão a sua livre e pessoal decisão, que em nada afectará os outros como deve ser numa sociedade aberta. Assim como assim, que outros tenham de amochar perante a proibição (ó palavra mil vezes maldita em tempos esquerdalhos) do governo não lhes diz respeito. Na sociedade livre cada um olha e pensa por si; excepto, claro, quando não é um suposto liberal quem esgana o leme.

Todo cambia

Rui Passos Rocha, 31.03.12

Resignation is confirmed desperation, escreveu algures Thoreau. Pensei nisto há dias quando duas cenas do Shawshank Redemption me aguçaram o traumatismo interno: uma é aquela em que o personagem principal arrisca pancada e solitária por ousar encher de ópera os tímpanos da prisão - porque, como dirá depois de cumprida a pena pelo ultraje, há coisas que nem à bastonada nos podem arrancar a não ser que o deixemos. À bastonada ou à agulhada na uretra, diria Alekos Panagulis. A outra é a cena da evasão em que ele rasteja por 500 metros de esgoto para desembocar no mar da liberdade. Tratado como merda, o homem livre perde o pejo de esfregar a cara na merda, sua e dos outros, mesmo a dos merdosos, se o troco é mandar a merda para aonde ela pertence. Um tipo assim não vai parar ao boletim de voto. Ainda bem.

A douta comuna

Rui Passos Rocha, 29.03.12

Soube hoje que o primatólogo Frans de Waal verificou num estudo que recompensas iguais para igual trabalho geram harmonia numa comunidade de macacos, mas recompensas desiguais criam tumultos. A tarefa, se não me falha já a memória, era transportar cubos e a recompensa inicial foi de um pepino a cada macaco. Nesta altura todos trabalhavam bem e desempenhavam a tarefa em semelhante período. Quando os investigadores começaram a oferecer uvas em vez de pepinos a alguns dos macacos deu-se a confusão.

 

Porque se trata de primatas, lembrei-me deste post de Chris Dillow sobre a desigualdade de rendimentos no futebol. No caso, o autor argumenta que o Arsenal faria melhor em não renovar contrato com o craque Van Persie porque, segundo um estudo, o rendimento global da equipa tenderá a decair. “The authors estimate that if a team changes from everyone being paid the same wage of €600k pa (the average in their sample) to a superstar earning €1.5m pa and everyone else in the team getting €510k, the chances of the team winning a game falls by 20 percentage points.” E pronto, agora era a parte da punchline mas.

Penitencio-me

Rui Passos Rocha, 15.03.12

Votei no actual primeiro-ministro não por antroponímia mas porque, como muitos outros, acreditei que a recuperação económica passaria por mais realismo e menos prepotência. Até pensei que talvez houvesse uma diferença substancial entre Silva Pereira e Relvas; a haver diferença, será na teia ainda pouco tecida pelo primeiro.

Quis crer que a inexperiência de Passos Coelho, comparada com os já muitos anos de governante de Sócrates, tenderia a reduzir o clientelismo e o poder dos lóbis. Não me passou pela cabeça que o Jorge Coelho do PSD, e braço direito de Passos (ou será Passos o braço direito de Relvas?), se tornasse ministro das privatizações e da regulação. Depois de tantos casos de abafamento mediático com Sócrates, a era Passos não seria um déjà vu. Pelo menos não nove meses depois.