No Insurgente, António Costa Amaral (AA) refere um artigo que explica a inveja como subproduto de pressões selectivas exercidas durante o Paleolítico. O artigo defende que a inveja é uma emoção que terá proporcionado "sucesso" há alguns milhares de anos mas que não faz sentido nas "civilizações" altamente complexas de hoje em dia, em que os jogos de suma nula foram substituídos por jogos de soma positiva. Actualmente, este quadro mental já não garante "sucesso". Bom: num texto tão confuso, o título que o AA escolheu - O socialismo deriva de psicologias da idade da pedra - até acaba por parecer um mal menor.
Ou quase. Na verdade, e de forma geral, toda a nossa psicologia remonta à idade da pedra. A selecção natural não actua suficientemente rápido para que o nosso hardware mental acompanhe as mudanças vertiginosas da paisagem cultural à nossa volta. Geneticamente falando, continuamos todos na idade da pedra. E a "inveja" que está na base do socialismo é tão tributária do Paleolítico como o desejo de superação pessoal que enforma o capitalismo. Socialismo, comunismo, social-democracia e capitalismo são apenas respostas diferentes a emoções que, tanto quanto sabemos, parecem bastante transversais a todos os homo sapiens.
Esta é uma nota de pormenor. Mais importante é aquele "sucesso" que o autor do artigo usa, sem nunca definir muito bem. É que sucesso, em termos de selecção natural, significa sucesso reprodutivo: deixar mais descendência fértil do que a concorrência (e talvez nem isso). E este sucesso é intrinsecamente relativo. O que conta não é o número de filhos que deixamos, mas o número de filhos que deixamos relativamente à concorrência. Portanto, e mesmo "comprando" o argumento de que não havia jogos de soma positiva no Paleolítico, é um disparate dizer que, a este nível, this time is different. Não é.
Mas e se fosse? Por que é que deviamos mudar a nossa natureza apenas porque esta não é a que nos garante mais "sucesso"? Sobretudo quando "sucesso" significa apenas "sucesso reprodutivo". Milhões de anos a evoluir neste planeta para acabarmos a elevar a maximização da prole a estatuto de objectivo de vida? Sinceramente.
Ainda assim, o artigo toca num ponto importante: as emoções e sentimentos que estão "hardwired" no cérebro. A inveja é uma. O ódio é outra. Ambas podem ser destrutivas, mas não é óbvio o que devemos fazer a respeito delas. Sobretudo porque, estando tão impregnadas na nossa psicologia, não é provável que possam ser sublimadas através da aculturação. As experiências comunistas com reeducação de crianças mostram bem como nem todo o condicionamento do mundo é suficiente para quebrar um dos laços mais viscerais do ser humano: a ligação entre pais e filhos. Há coisas que não se mudam. A aversão à desigualdade pode ser uma delas.
O que fazer? Pense-se no caso da dor física. A dor física é tão real como a dor psicológica instigada por sentimentos de inferioridade que resultam da desigualdade. Não passa pela cabeça de ninguém dizer à populaça que poderia ter uma vida muito melhor se pura e simplesmente ignorasse a dor física. Não é possível - a dor está lá. Mas o esforço, persistência e um ambiente cultural apropriado podem tornar este apelo mais aceitável em contextos mais específicos. Por exemplo, para ajudar a ultrapassar a dor de apanhar uma vacina ou o incómodo de fazer exercício com frequência. São dores pequenas com benefícios implícitos grandes.
O mesmo princípio pode aplicar-se à desigualdade. Uma parte da dor psicológica da desigualdade pode ser combatida através da educação: por exemplo, ensinando a teoria da produtividade marginal do trabalho e a ligação entre produtividade e salário; explicando que a redistribuição do bolo económico tem efeitos na sua dimensão; e defendendo a importância ética de não meter a foice em seara alheia. A cultura, e o discurso liberal, em particular, têm um papel importante a jogar aqui. A aversão social à desigualdade diminui na medida em que ela for considerada mais legítima.
Fora estes ajustes pontuais, que serão sempre de alcance limitado, será provavelmente necessário reconhecer que uma boa parte da desigualdade tem de ser resolvida de forma directa: impostos de um lado, subsídios do outro, serviços públicos e por aí fora. Não é a solução ideal; mas talvez mais fácil gerir estas tensões mudando o código fiscal do que a posição dos nossos nucleótidos.