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A Douta Ignorância

Política, Economia, Literatura, Ciência, Actualidade

A Douta Ignorância

Política, Economia, Literatura, Ciência, Actualidade

Austeridade e consenso social

Rui Passos Rocha, 17.09.12

1) Portugal vinha sendo apresentado como um caso de sucesso: os políticos apresentavam medidas de austeridade para combater a recessão e elas tinham o apoio tácito de grande parte da população, ou pelo menos a sua aceitação apática. Grande parte dessas medidas, inscrita no memorando de entendimento (assinado por Sócrates e com a aprovação de Passos Coelho), seria tida como inevitável e o seu cumprimento desejável para que continuássemos a receber os empréstimos da troika e evitássemos qualquer das alternativas que, por imprevisíveis ou indesejáveis, eram vistas como piores do que a deterioração do modo de vida.

Também a deteriorar-se vinha a opinião pública sobre a classe política. A perda parcial e temporária de soberania na formulação de políticas públicas não significa que os eleitores transfiram para a troika a responsabilidade por má governação. Todas as medidas, mas em particular as que vão além da troika, assentam num consenso frágil que implica progressividade na contribuição - quem mais tem mais deve dar. Passos Coelho desbaratou parte da pouca confiança pública possível com nomeações dúbias para cargos públicos e com o apoio aos desmandos de Miguel Relvas. E, pior, anunciou uma reformulação da TSU que não só inverte a tendência progressiva da contribuição como também não tem efeitos óbvios e significativos para a melhoria económica do país.

Grande parte dos que se manifestaram no sábado não está necessariamente contra as medidas exigidas pela troika, mas rejeita perder dinheiro em nome de políticas que considera injustas e que, pior, duvida virem a contribuir para o fim deste estado de coisas. António José Seguro vai votar contra o Orçamento de Estado, apesar de quase tudo o que lá consta ser praticamente inegociável; aquilo pelo qual deveria votar contra o OE, e que motivará uma sua moção de censura, é a proposta de alteração da TSU. Também Seguro está disposto a quebrar o consenso mínimo para se distanciar de um memorando de entendimento do qual pouco poderá negociar se chegar a líder do governo.

2) Hoje demorei 45 minutos a atravessar parte da Avenida da República (do Saldanha à rotunda do Marquês de Pombal) de autocarro. Tive tempo de sobra para observar que os polícias de trânsito deram prioridade aos carros sobre os autocarros, o que faz todo o sentido se o que se pretende é reduzir o tráfego automóvel e incentivar o recurso aos transportes públicos.

Uma das consequências da austeridade é a deterioração dos serviços públicos, com cortes em gastos e em pessoal. Mas esses cortes - ou racionalização, se preferirem ver a coisa só com o olho esquerdo - devem ser o mais consensuais possível: percursos com menos utentes devem ser reorganizados, trajectos optimizados, etc. O que não faz sentido é limitar o acesso automóvel ao centro da cidade e ao mesmo tempo fazer com que alguém demore o triplo do tempo a chegar do Saldanha a Alcântara pagando quase o dobro do que pagava há dois anos.

Fernando Henrique Cardoso dizia há dias que tempos de austeridade exigem líderes capazes. Para que estes possam encontrar uma saída para a crise, dizia ele. E, acrescento, para que estes minorem o mais possível os efeitos nefastos dos cortes, que só serão aceites se forem justos e inteligentes. Coisa que faltou nos últimos dias.

Ramos e Rosas

Rui Passos Rocha, 05.09.12

Um país em que um historiador explicita, na sua obra, que o regime 'x' foi menos repressivo do que o regime 'y' por motivos que ele elenca deveria ser um país em que outro historiador, para quem o regime 'x' foi na globalidade mais repressivo do que o regime 'y', especificasse em que aspectos o foi e por que motivos a comparação faz pender a balança em seu favor. Esse também deveria ser um país em que outro historiador, que pensa de forma semelhante ao anterior e tem um percurso académico mais robusto que ele, aproveitasse a discussão para recentrar o debate, criticando um pelos indicadores com que ilustra o seu discurso menos crítico do regime 'x'  e o outro por basear a sua crítica do primeiro (para não falar da insinuação sobre as suas preferências ideológicas) numa ínfima e descontextualizada parte da sua obra. Mas não: o texto de Fernando Rosas no Público de hoje é uma tentativa de colocar o ónus da prova em Rui Ramos, quando deveria ser Manuel Loff (porque despoletou a discussão), com ou sem a ajuda de Rosas, a tornar a sua crítica mais sólida e obrigar Rui Ramos a responder de forma igualmente inteligente. É triste que a discussão de um tema importante por duas das pessoas que melhor o conhecem acabe em acusações e vitimizações.

A posição do missionário

Rui Passos Rocha, 07.08.12

Todos queremos parecer muito inteligentes. Ou, no mínimo, todos queremos dar a entender que não somos idiotas. Custa perceber que em rigor devemos incluir "não sei" ou "acho que" em 90% das nossas frases; custa bem menos não usar essas expressões, talvez até convencendo-nos de que não é por orgulho que o fazemos mas porque seria, aos olhos dos outros, redundante fazê-lo. Mas isto provavelmente custa mais a quem menos faz por ser realmente inteligente, sendo a inteligência um critério mais qualitativo do que quantitativo - e fazer por ser inteligente implica saber como se deve fazê-lo, o que implica sentir atracção pela busca inacabada, para usar termos que farão João Carlos Espada rejubilar.

O texto de Elísio Estanque no Público de ontem é, para não variar, um exemplo de como é mais fácil encaixar a realidade, que é maçadoramente complexa, nas preferências pessoais. O texto tem o título sugestivo "Às portas do trabalho escravo" e reza assim:

 

«[...] Pode dizer-se que a luta é agora entre os "descomplexados competitivos" e os "preguiçosos coletivistas". As novas leis do trabalho são, portanto, o resultado de uma luta persistente dos primeiros contra o conservadorismo coletivista dos segundos (e contra o vírus sindical, que está moribundo mas não morto), visando a generalização do trabalho forçado, isto é, criando um amplo exército de famintos, uma nova força de trabalho disponível para o trabalho gratuito, que começa a emergir dos destroços da atual classe trabalhadora. Em vez da busca de compromissos que, desde o século XIX, o capitalismo industrial tentou estabelecer entre capital e trabalho, a linha dura que esta nova "internacional liberal" fortemente apoiada no capitalismo financeiro fez aprovar (e que, naturalmente, o Governo português foi dos primeiros a subscrever) retoma a velha ideia do "trabalho-mercadoria" como primeira prioridade a caminho do "Sol nascente" do hiperliberalismo competitivo. [...]»

Quase arrisco dizer que é também um exemplo de como o dito de Kahneman no post abaixo também se aplica a quem faz da investigação profissão, mas não posso estar seguro disso. E é também um exemplo de como o uso de palavras difíceis no discurso, para lhe dar uma roupagem inteligente, acaba por ter o efeito contrário: o de o interlocutor ficar com a impressão de que aquela pessoa não se saberia explicar em termos simples, no mínimo, ou está mesmo a tentar enganar os outros. Sobre isto, e para umas risadas, recomendo o livro Imposturas Intelectuais de Sokal e Bricmont e, como atalho, este paper de Daniel Oppenheimer.

Mas atenção que a realidade não é a preto-e-branco: o argumento da falta de honestidade intelectual aplica-se a quase toda a raça, talvez até a toda ela a espaços (sim, estou a incluir-me no lote). É a necessidade de não parecerem estúpidos que faz com que mesmo os que compreendem o método científico (no sentido de método para adquirir conhecimento o mais fiável possível) escorreguem: aconteceu com Orlando Figes, um dos especialistas da história soviética, e com Jared Diamond, um entendedor de como a geografia condiciona o desenvolvimento económico. Ambos quiseram embelezar as suas narrativas inventando uns estropiados cujas histórias de vida ilustrariam o declínio desta ou daquela civilização.

Curiosamente ou não, ambos se especializaram em realidades remotas: uma sociedade que já lá vai, no caso de Figes, e sociedades que ainda estão no sítio mas sobre as quais com sorte ouvimos falar meia dúzia de vezes por ano e devido a catástrofes naturais ou massacres (como a Papua Nova Guiné). Figes chegou mesmo a escrever na Amazon comentários negativos a obras de um seu concorrente, Robert Service; Diamond ficou-se por embelezar, ou até mesmo inventar (há um processo judicial em curso), citações - coisa que certamente chocaria o Sindicato dos Jornalistas, que tem a barriga cheia por a imprensa nacional não ter o hábito nem meios para fazer double-checking com as fontes. Diamond e Jonah Lehrer, que escreveram para a New Yorker, não tiveram essa sorte.

Elísio Estanque escreveu (como de costume) sobre aquilo em que se especializou (no sentido de "tema sobre o qual mais lê e escreve", mas acho que se percebe o que quero dizer com isto): o mercado laboral português. Fê-lo de forma henrique-raposiana, criando conceitos populistas para algo que é demasiado abstracto para poder ser falsificável, mas que obnubila e acicata quem se abespinha com facilidade (estou a ficar contagiado). O reverso da medalha é que - no caso de um como no do outro - escrever assim deixa um rasto indisfarçável de mau cheiro. Contra a tentação do pensamento estanque valha-nos o peer review.

A douta ignorância

Rui Passos Rocha, 30.07.12
"It is the consistency of the information that matters for a good story, not its completeness. Indeed, you will often find that knowing little makes it easier to fit everything you know into a coherent pattern"
- Daniel Kahneman, Thinking Fast and Slow

Sobre igualdade na austeridade

Rui Passos Rocha, 30.07.12

A decisão do Tribunal Constitucional de considerar inconstitucional o corte do 13º e do 14º meses no sector público vai enformar as decisões do governo até ao final da legislatura. Por isso vale a pena ler o longo texto de Pedro Lomba no Público de hoje, em que contextualiza a decisão e termina lançando uma série de dúvidas:

«Devem os juízes constitucionais pretender "interpretar" a opinião pública para conduzir a sociedade em escolhas políticas fundamentais? Devem formular julgamentos subjectivos de igualdade proporcional sobre uma realidade económica que desconhecem? Não creio. Mas: se o Governo tivesse mostrado mais modéstia executiva na invocação da excepção financeira, teria recebido igual modéstia judicial do TC? Se o TC não tivesse dado sinais em 2011 de que não se intrometeria no debate político-económico, teria o Governo avançado com o corte dos subsídios como avançou? Se PS e PSD não tivessem atrasado a eleição dos novos juízes, teria a nova composição feito algo diferente? Se Passos Coelho não tivesse deixado cair o aumento de meia hora, iria o TC dizer que o sector público estava a ser sobrecarregado? Se os titulares de funções de soberania, como os magistrados, tivessem sido excluídos dos cortes, teriam os juízes que votaram em 2011 pela constitucionalidade mudado de posição? Se o pedido de fiscalização não tivesse partido sobretudo de deputados desalinhados do PS, faria alguma diferença? Nunca saberemos. Este texto destina-se só a pensar que estas dúvidas contrafactuais não são e não foram, neste contexto, irrelevantes.»

Lembrar moderadamente

Rui Passos Rocha, 20.07.12

Morreu um historiador fascista que teve o mérito de conseguir gerar em muita gente o interesse pela história do país e o demérito de o fazer efabulando. Que é melhor não saber do que saber falsidades, como alguém disse, concordo; mas que seja melhor não saber do que saber meias verdades discordo. Hermano Saraiva contou historinhas e pode ter ajudado a fazer muitos nacionalistas de livro fechado, mas também cozinhou em muitos o interesse por procurar saber mais. Isto não é serviço público, mas é qualquer coisa. O que não é nada é lembrá-lo só pelo que foi depois ou antes dos cravos. Fora isto, eu e as minhas amêndoas de caju estamos à espera dos textos de Rui Ramos e Fernando Rosas sobre o senhor. Só para ver se este continua a ser o melhor dos mundos.

Puberdade

Rui Passos Rocha, 14.07.12

Quem cava trincheiras voluntariamente abdica acima de tudo da sensatez. O que ganha em populismo, por incentivar o amor e ódio de free riders informativos, perde em distanciamento e humildade.

No seio de quem defende liberdades individuais face ao Estado há o dito recorrente de que os abastados que votam no PCP ou no BE são ignorantes. Não sabem - diz-se - que estão a defender gente que lhes retiraria parte importante dos bens e os redistribuiria. Não é uma "escolha racional". Racional é todos votarem de acordo com o que mais os pode beneficia, independentemente dos outros, como no princípio de incerteza rawlsiano em que todos envergam o véu da ignorância. O problema do modelo é, antes de mais, que não vivemos o momento do contrato social fundador, mas também que - consequentemente, talvez - há quem valorize a comunidade o suficiente para abdicar de parte do que poderia ganhar optando pelo individualismo. Isto só não é um tipo de escolha racional para quem não o é sempre.

Do mesmo modo, a teoria marxista que diz categoricamente que em sistemas capitalistas as elites se perpetuam no poder (é parcialmente verdade, sobretudo em países como Portugal) diz que a cultura de massas e a comunicação social servem o propósito de doutrinar o povo e impedi-lo de fazer escolhas racionais. Não que o povo não seja racional, mas toma decisões racionais condicionado pela informação falsa que lhe dão de beber. Como se essa ideia não fosse igualmente ofensiva para o povo, que se vê tido como incapaz de filtrar o que lhe chega, sobretudo porque é assim considerado por outros membros do povo que se dizem possuidores de clarividência só porque leram uns livros escritos por dois tipos alemães.

Enquanto não forem tapadas as trincheiras que amarram o raciocínio a uma formatação prévia não haverá espaço para o que deve ser prioritário: construir as pontes possíveis entre ideologias. Esse tipo de discurso equilibrado é possível, como se percebe pelo último texto do JPM. Ou pela distância entre a inteligência de Pedro Mexia e Ricardo Araújo Pereira e as birras de João Miguel Tavares no Governo Sombra da TSF.

Sobre o acórdão do TC

Rui Passos Rocha, 07.07.12

A relação entre a política e a justiça é terreno pantanoso para mim, daí preferir suspender o juízo. Mas tenho algumas dúvidas e notas que gostaria de ver na mesa:

- No comunicado que resume o acórdão, o TC diz que o problema do corte dos subsídios à função pública é não ter "equivalente para a generalidade dos outros cidadãos" e que a "diferença de tratamento" de público e privado é "acentuada e significativa". Isto significa que o TC aprovaria apenas cortes idênticos para trabalhadores do Estado e privados, ou poderá aceitar medidas que tornem o diferencial menos acentuado? Não li o acórdão, apenas o comunicado.

- O primeiro-ministro, que em Outubro de 2011 "justificou a decisão de eliminar os subsídios de férias e de Natal apenas na função pública dizendo que um corte generalizado não seria visto de forma credível na Europa e que deixaria Portugal sem ajuda externa já em Novembro" vai agora dizer que há uma terceira via, com nova mas mais leve austeridade para os privados, de modo a reduzir o hiato em relação à função pública? Ou vai cortar o 13º e o 14º meses também aos privados (a hipótese de restituir os dois meses à função pública parece fora do baralho).

- É verdade, como escreveu ontem Pedro Santos Guerreiro, que o governo impôs o corte nos subsídios só à função pública por ela não ser a sua base eleitoral? Sendo o argumento oficial o de que a medida foi acordada com a troika, qual é afinal a causa mais forte? Alguém que conheça o memorando sabe responder se a troika exigiu este corte selectivo?

 

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